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"Há grupos de brasileiros caçando venezuelanos na fronteira"

Venezuelanos aguardam na fila do centro de triagem para concessão de documentos em Pacaraima, Roraima - NILTON FUKUDA/ESTADÃO CONTEÚDO
Venezuelanos aguardam na fila do centro de triagem para concessão de documentos em Pacaraima, Roraima Imagem: NILTON FUKUDA/ESTADÃO CONTEÚDO

Yan Boechat

De Pacaraima

23/08/2018 19h55

Os imigrantes venezuelanos que permanecem em Pacaraima, na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, estão vivendo sob uma espécie de toque de recolher informal. Desde sábado (18), quando brasileiros expulsaram de forma violenta com paus e pedras cerca de 1,2 mil venezuelanos que estavam instalados de forma improvisada no pequeno município, poucos são os que se arriscam a ficar nas ruas durante a noite.

"Antes do sol cair precisamos correr para casa, há grupos de brasileiros rondando e caçando os venezuelanos", diz Gustavo Luces, de 36 anos, que há cinco meses deixou a cidade de Maturín, no Estado de Monagas, já às margens do Mar do Caribe, para buscar refúgio no Brasil. Ele, como a maior parte dos imigrantes que permanecem na pequena cidade fronteiriça, diz estar sendo ameaçado pelos brasileiros.

"A própria polícia faz vista grossa para os motorizados (motociclistas) que estão fazendo as patrulhas. Estamos sendo tratados como lixo, como animais", conta o motorista Miguel Ángel García, que teve todos os seus pertences e documentos queimados durante o ataque do sábado passado.

A polícia local, tanto a Civil como a Militar, refuta a informação e diz que agora a situação na cidade se acalmou. No entanto, integrantes do movimento que organizou a manifestação violenta do último sábado afirmaram que grupos de moradores tem se unido para patrulhar e impedir que novos grupos de imigrantes voltem a se instalar nas ruas e praças de Pacaraima.

"Eu não recomendaria a nenhum venezuelano ficar nas ruas à noite, pode ser perigoso para eles", diz Wendel Lima, um vigilante de 31 anos que participou de maneira ativa dos ataques aos imigrantes no sábado, pouco antes de mais um protesto realizado pelos moradores locais.

Ele, no entanto, nega que haja violência de civis contra os venezuelanos. "O que estamos fazendo é o que foi acordado com a Polícia Militar. Encontramos alguém querendo se instalar aqui e chamamos a PM", diz ele, sem negar, no entanto, que a população pode se tornar violenta caso venezuelanos sejam encontrados dormindo nas ruas da cidade.

Fernando Abreu, um professor aposentado que assumiu o microfone no carro de som durante os ataques de sábado, afirma que as carreatas têm como principal função patrulhar a cidade e mostrar que os moradores não irão mais aceitar venezuelanos vivendo nas ruas de Pacaraima.

"Nós vamos impedir que eles fiquem aqui, estamos defendendo nossa casa, nossa integridade física", diz ele, que defende maior rigor no controle da entrada dos venezuelanos em Roraima. "Quase todos que estavam aqui eram criminosos, usavam as crianças para pedir dinheiro para eles."

Nesta quinta-feira (23/08), o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, visitou o centro de acolhida aos imigrantes em Pacaraima. Ele refutou as acusações de que o governo federal tenha sido omisso no apoio à chegada maciça dos venezuelanos e disse que, a partir de agora, homens da Força Nacional irão patrulhar as ruas da cidade.

"Queremos evitar exatamente o empoçamento de imigrantes em uma cidade como Pacaraima. Vamos construir um abrigo de passagem entre a fronteira e Boa Vista", disse. Jungmann também afirmou que a fronteira entre o Brasil e a Venezuela não será fechada e disse que a situação está sob controle na região. "Estamos cuidando da segurança de todos, brasileiros e venezuelanos."

"Carreatas da paz"

"Só um suicida seria estúpido o bastante para passar a noite nas ruas aqui, a violência está no ar, não há nada calmo em Pacaraima", diz o padre Jesús Bobadilla, pároco de Pacaraima e o principal defensor dos direitos dos imigrantes na cidade. "Todo o discurso de que há tranquilidade, de que a cidade está em paz, é falacioso, não existe, não sabemos o que vai acontecer", conta.

De acordo com o padre, um espanhol nascido no Marrocos e que vive na região há nove anos, grupos de motoqueiros encapuzados e armados com bastões têm circulado pela cidade durante a noite caçando os venezuelanos.

"Eles também têm realizado o que chamam de carreatas da paz, mas não há nada pacífico nelas, são verdadeiras patrulhas", conta ele, que se reconhece como o inimigo número um dos moradores da cidade. "Já perdi 50% dos meus fiéis, mas não me importo, estou seguindo as palavras do evangelho."

A reportagem da DW acompanhou uma dessas carreatas na noite de quarta-feira. Com motoqueiros à frente, cerca de 20 carros – a maior parte deles caminhonetes de grande porte – circularam pelos principais pontos onde os venezuelanos se concentravam na cidade antes de serem expulsos.

Nos automóveis, cartazes que pediam paz e afirmavam que os moradores de Pacaraima não eram xenófobos, além de alguns poucos balões brancos. "Nós vamos circular pela cidade pedindo paz. Não temos como receber tanta gente, e muitos deles vinham para cá para roubar", diz a professora Neura Costa.

Diante do abrigo de índios da etnia Warao, que estão sendo protegidos pelo Exército Brasileiro em instalações fechadas, muitos gritos e buzinas dos manifestantes. Um homem dirigindo uma caminhonete preta parou diante do abrigo e começou a gritar: "Vão embora imigrantes, o Brasil não precisa de vocês". Logo em seguida passou a atacar os militares que faziam a segurança dos indígenas. "Traidores da pátria, isso que vocês são."

Menos venezuelanos cruzando a fronteira

Diante da tensão, o número de venezuelanos que buscam abrigo no Brasil caiu de forma sensível nesta última semana. Dos cerca de 800 a mil imigrantes que cruzavam a fronteira diariamente até o último sábado, a média foi reduzida para ao menos a metade.

"Estão todos com medo do que aconteceu, ninguém sabe o que pode acontecer, e chegamos quase todos aqui sem dinheiro algum, não há como seguir para Boa Vista", diz José Garcez, que chegou à fronteira na última segunda-feira com a mulher e cinco filhos.

Enquanto aguardava a regularização dos documentos para entrar no Brasil como refugiado, Garcez e sua família repetiam a rotina das centenas de venezuelanos sem dinheiro que permanecem por aqui: passa o dia em Pacaraima buscando comida e documentos e, ao anoitecer, segue para uma área coberta próximo a um estacionamento de caminhões, já em território venezuelano.

É ali que os imigrantes estão se reunindo para dormir durante a noite. Famílias inteiras, com crianças de colo e idosos, têm se amontoado nesse pequeno espaço coberto. Não há nenhum tipo de sistema sanitário ou acomodação. A maior parte das famílias usa pedaços de papelão como cama.

Todas as manhãs, antes do sol nascer, militares venezuelanos retiram os imigrantes do abrigo. "É humilhante, estamos nos sentindo como animais. Mas a verdade é que ainda é melhor do que de onde eu venho, de Barcelona. Lá não há nada", diz Garcez. "Há quatro meses meu filho menor morreu. Não havia remédios para ele. O governo da venezuela o matou."

Ele pretende se instalar com sua família em Boa Vista. Nesta quinta-feira, enquanto o ministro Jungmann visitava o centro de acolhida na fronteira, Garcez se preparava, enfim, para seguir viagem para a capital de Roraima. Vendeu o último celular da família e conseguiu os 120 reais necessários para comprar as passagens de ônibus para ele, a mulher, a mãe e os cinco filhos. "Espero que lá não nos ataquem como atacaram os venezuelanos aqui."