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Por que comemos tanto na época de Natal?

Philipp Jedicke (fc)

25/12/2018 08h36

A sociedade vivenciou uma grande mudança de paradigma envolvendo o Natal e a gula. "Na sociedade moderna, temos que tornar tudo especial. Não suportamos mais a vida cotidiana", explica o antropólogo Gunther Hirschfelder.No período pré-Natal, os mercados natalinos na Alemanha ficam lotados. Em todos os lados, é possível ver moradores e turistas aproveitando as barraquinhas fartas de guloseimas e bebidas. Mas será que no passado os dias festivos eram comemorados de forma diferente? As pessoas sempre comeram tanto na véspera do Natal?

Para responder a essas questões, a DW entrevistou o antropólogo cultural Gunther Hirschfelder, da Universidade de Regensburg, na Baviera. Ele afirma que houve uma mudança de paradigma e que, durante séculos, a ceia de Natal não era nada excepcional.

"Temos uma sociedade permanentemente superregulada. É por isso que as empresas estão sempre procurando ocasiões para romper com esses mecanismos regulatórios. Assim, a temporada do Advento e do Natal se torna uma época de comer sem moderação", explica.

DW: A gula sempre foi algo negativo?

Gunther Hirschfelder: Durante milênios, os seres humanos sofreram como espécie, grupo social e indivíduo porque não tinham o suficiente para comer. Até meados do século 19, havia sempre uma dramática deficiência calórica, de modo que ser gordo era considerado positivo. Comer muito e bem era privilégio dos ricos.

Mas mesmo na Grécia Antiga houve tentativas de considerar a moderação como virtude e a gula como algo ruim. Houve uma mudança fundamental de paradigma apenas com a moralização da alimentação pela Reforma Protestante no início do século 16. O apelo à moderação se tornou, então, a norma cultural.

Mas na véspera do Natal as pessoas sempre comem muito.

Ao contrário. Durante séculos, a ceia de Natal não era uma coisa excepcional. O jejum pré-Natal, interrompido apenas pela festividade de São Nicolau, foi imposto pela Igreja Católica até 1917 e seguiu sendo praticado, inclusive, depois disso. A ideia básica do jejum foi comprovada em pesquisas nos anos 1930 e 1940. Até então, o Advento servia como preparação para o Natal, um tempo de silêncio, contemplação e retiro espiritual. O Natal desempenhou um papel cada vez mais importante desde o século 19. Na verdade, a Páscoa sempre foi o destaque do ano eclesiástico. Mas o tempo da grande gula realmente começou nos anos 1950.

Como esse fenômeno se manifestou?

Os anos 1950 são conhecidos pelo alto consumo de açúcar, carne e álcool. Em meados do século, mais produtos de Natal e Advento chegaram ao mercado e houve uma maior procura. O consumo aumenta drasticamente porque a Alemanha está se transformando de uma pura sociedade de fornecimento de produtos para uma sociedade de consumo. O Advento está evoluindo gradualmente de um tempo de jejum para um tempo em que o alimento ganha mais destaque. Há uma demanda crescente por produtos que costumavam ser difíceis de obter, como farinha branca e açúcar. Esses produtos têm um alto valor, assim como a carne e o álcool.

No início do século 20, havia calendários de Advento com chocolate, mas as crises econômicas e as duas guerras mundiais tornaram esse luxo impossível para muitas famílias. Depois da Segunda Guerra Mundial, as coisas mudaram. Antes, havia celebrações somente nos domingos de Advento e no próprio Natal. Nos anos 1950 e 1960, a época festiva cobria toda a temporada do Advento, a véspera do Natal e, ainda, os dias 25 e 26 de dezembro. E, hoje, os produtos de Natal e Advento estão disponíveis em todo o país a partir do final do verão europeu.

De onde vem esse desejo de festejar e celebrar?

Temos uma sociedade permanentemente superregulada. É por isso que as empresas estão sempre procurando ocasiões para romper com esses mecanismos regulatórios. Assim, a temporada do Advento e do Natal se torna uma época de comer sem moderação. O efeito psicológico é para muitas pessoas o seguinte: "Eu como de forma bastante saudável, mas, agora, é época do Advento". Pequenas exceções são criadas, com o efeito de uma válvula de escape. E quanto menor o papel da religião ou da Igreja na sociedade, mais importante se torna a comida. Tradicionalmente, a véspera de Natal era, por assim dizer, o fim da Quaresma.

A salada de batata e salsichas eram a ceia de Natal?

Sim, era a refeição da véspera de Natal. No século 20, a celebração de Natal se converteu em uma festa: a salada de arenque ou a salada de batata com arenque se tornaram uma comida de luxo. Quanto mais perdemos de vista o caráter espiritual e litúrgico, mais celebramos a véspera de Natal não como o nascimento do Senhor, mas a nós mesmos. E, claro, há uma função principal: a véspera de Natal se tornou o evento social mais vinculativo do ano.

A gula não seria uma medida de grande compensação?

Vivemos em tempos de mudança e incerteza. Como sociedade, tememos o futuro e o presente. Não estamos em condições de suportar tantas crises permanentemente. Em uma sociedade moderna, temos que tornar tudo especial, não suportamos mais a vida cotidiana. E todo ano o Natal tem que ficar maior e melhor, deixando uma decepção permanente em comparação com a véspera de Natal de quando éramos crianças. Essa é a essência da sociedade de consumo capitalista. Eu tenho uma necessidade permanente de comprar. Essa é a lógica do consumo que, no final, nunca satisfaz, a menos que você compre ainda mais.

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