Um selo de ética na agricultura para proteger imigrantes na Itália
Organização quer certificar boas práticas na produção e distribuição de alimentos para proteger trabalhadores estrangeiros submetidos à exploração. Fundador vê raiz do problema nos hábitos de consumo.As vastas favelas da região da Apúlia, no sul da Itália, onde trabalhadores agrícolas vivem em barracos de madeira, não eram o que o estudante camaronês Yvan Sagnet esperava encontrar. Ele foi à região em 2011, aos 26 anos, quando frequentava a Universidade Politécnica de Turim e buscava uma maneira de ganhar dinheiro para custear os estudos.
"Fui à Apúlia por indicação de amigos. Eles não me disseram que havia exploração extrema por trás de tudo aquilo", conta Sagnet. "Quando cheguei, me deparei com aquele contexto surreal de favelas e campos de migrantes. As pessoas estavam ali porque não tinham opção, mas para mim, vindo de um contexto diferente, aquilo era inaceitável."
Não demorou até que Sagnet e centenas de outros trabalhadores começassem uma greve contra as condições de trabalho em Nardo, depois que alguns foram solicitados a fazer mais pelo mesmo valor já baixo de 3,50 euros pago para se levantar uma caixa de tomates de 300 quilos.
No ano anterior, protestos contra um ataque a trabalhadores agrícolas perpetrado por jovens locais levaram a distúrbios na região da Calábria, também no sul do país. Como resultado, centenas de migrantes africanos foram deportados da cidade de Rosarno. Críticos classificaram a decisão das autoridades de limpeza étnica.
A greve da qual Sagnet participou, em meados de 2011, durou dois meses. "Conseguimos chamar a atenção para o sistema", afirma. Recrutadores ilegais de mão de obra barata, conhecidos pelo termo italiano caporali, são contratados por fazendeiros e depois ficam com uma parcela dos salários dos trabalhadores.
Após alguns trabalhadores quebrarem o silêncio e denunciarem seus caporali e empregadores, 12 pessoas foram condenadas por escravidão em 2017, na primeira sentença do tipo. A atuação dos caporali ainda não era criminalizada no momento das prisões.
Num primeiro e significativo passo, a Itália havia aprovado, em setembro de 2011, uma lei que classificou a "mediação ilegal e exploração laboral" como crime passível de até oito anos de prisão. Até então, os caporali não corriam muito mais riscos que serem sujeitos a uma multa de 50 euros quando pegos em flagrante. Em 2016, a lei passou a criminalizar também os empregadores, numa tentativa de reduzir a demanda por intermediários.
No entanto, críticos afirmam que o problema persiste devido à situação de vulnerabilidade extrema em que os trabalhadores se encontram, sendo submetidos a chantagens caso estejam sem documentos ou tenham um visto de residência vinculado ao empregador.
Segundo um levantamento do sindicato FLAI-CGIL, 400 mil trabalhadores estão sujeitos ao sistema dos caporali a cada ano. Máfias italianas e internacionais se infiltraram em vários estágios da cadeia de abastecimento.
"Modelo precisa mudar"
A experiência de Sagnet o fez acreditar que simplesmente perseguir os caporali não resolveria o problema enquanto a cadeia produtiva continuar a demandar produtos a preços extremamente baixos.
A organização NoCap, fundada por Sagnet, lançou um projeto piloto no ano passado com o objetivo de criar o primeiro selo de ética para ajudar consumidores a optarem por produtos que não envolveram exploração de pessoas. Em cooperação com um produtor, o projeto já produziu mil vidros de purê de tomate com selo ético.
"Estamos adotando uma estratégia que vai mirar as causas, e não os efeitos", afirma Sagnet. "Precisamos chegar à raiz do problema, que são o mercado, os consumidores e os distribuidores de larga escala."
Para Sagnet, o caporalato – sistema que envolve os caporali – é apenas a consequência. "As causas estão baseadas num modelo agrícola e de consumo que precisa mudar."
O objetivo de Sagnet é que a NoCap se transforme numa rede internacional que una todos os atores envolvidos na produção – dos consumidores aos grandes supermercados responsáveis pela distribuição, passando por agricultores e trabalhadores sazonais.
O selo da NoCap visa a certificar, portanto, boas práticas na cadeia de abastecimento alimentar. Para Sagnet, isso ajudaria consumidores a identificarem itens produzidos de maneira ética, supermercados a focarem num novo perfil de consumidores, produtores a decidirem que preço cobrar e trabalhadores a receberem um salário justo.
Quando a época da colheita do tomate começar, em julho, Sagnet espera ter acertado o investimento de uma primeira rede de supermercados em sua ideia e também ter conseguido apoio do governo – especialmente a permissão de uso de prédios confiscados da máfia para abrigar trabalhadores participantes do projeto.
Nova lei ameaça imigrantes
O governo italiano, no entanto, aprovou há pouco uma lei que pode aumentar a quantidade de imigrantes sem documentação no país, fazendo com que seja mais fácil que eles se tornem vítimas de práticas ilegais de emprego.
No último dia 5 de outubro, o ministro do Interior e vice-primeiro-ministro da Itália, Matteo Salvini, publicou um decreto sobre migração e segurança, o qual foi transformado em lei pelo Parlamento em dezembro. A medida aboliu vistos de "proteção humanitária" que a Itália concedia a requerentes de refúgio que não se encaixavam nos critérios para receber status de refugiado ou proteção subsidiária, mas eram reconhecidos como em situação de vulnerabilidade.
De acordo com o Instituto Italiano para Estudos de Política Internacional (ISPI), a nova lei deve dobrar o número de imigrantes sem documentação na Itália nos próximos dois anos, deixando mais 70 mil estrangeiros nessa situação. A nova legislação também impede que aqueles que tinham visto de "proteção humanitária" recebam ajuda.
"Haverá mais escravos à disposição, muitos deles sem documentação. Muitas dessas pessoas vão acabar trabalhando na agricultura", prevê Sagnet.
A nova lei italiana estabelece apenas seis casos especiais em que requerentes de refúgio podem receber proteção. Exploração laboral é uma das categorias, mas como o visto só é válido por seis meses, é improvável que trabalhadores em situação de vulnerabilidade se candidatem a recebê-lo.
"Enquanto supermercados continuarem a impor preços e determinar as regras do mercado, eles vão alimentar um sistema baseado em práticas ilegais", afirma Sagnet. "A agricultura é um sistema em pirâmide, e nós decidimos começar no topo dessa pirâmide, reconhecendo que o problema está nas regras."
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"Fui à Apúlia por indicação de amigos. Eles não me disseram que havia exploração extrema por trás de tudo aquilo", conta Sagnet. "Quando cheguei, me deparei com aquele contexto surreal de favelas e campos de migrantes. As pessoas estavam ali porque não tinham opção, mas para mim, vindo de um contexto diferente, aquilo era inaceitável."
Não demorou até que Sagnet e centenas de outros trabalhadores começassem uma greve contra as condições de trabalho em Nardo, depois que alguns foram solicitados a fazer mais pelo mesmo valor já baixo de 3,50 euros pago para se levantar uma caixa de tomates de 300 quilos.
No ano anterior, protestos contra um ataque a trabalhadores agrícolas perpetrado por jovens locais levaram a distúrbios na região da Calábria, também no sul do país. Como resultado, centenas de migrantes africanos foram deportados da cidade de Rosarno. Críticos classificaram a decisão das autoridades de limpeza étnica.
A greve da qual Sagnet participou, em meados de 2011, durou dois meses. "Conseguimos chamar a atenção para o sistema", afirma. Recrutadores ilegais de mão de obra barata, conhecidos pelo termo italiano caporali, são contratados por fazendeiros e depois ficam com uma parcela dos salários dos trabalhadores.
Após alguns trabalhadores quebrarem o silêncio e denunciarem seus caporali e empregadores, 12 pessoas foram condenadas por escravidão em 2017, na primeira sentença do tipo. A atuação dos caporali ainda não era criminalizada no momento das prisões.
Num primeiro e significativo passo, a Itália havia aprovado, em setembro de 2011, uma lei que classificou a "mediação ilegal e exploração laboral" como crime passível de até oito anos de prisão. Até então, os caporali não corriam muito mais riscos que serem sujeitos a uma multa de 50 euros quando pegos em flagrante. Em 2016, a lei passou a criminalizar também os empregadores, numa tentativa de reduzir a demanda por intermediários.
No entanto, críticos afirmam que o problema persiste devido à situação de vulnerabilidade extrema em que os trabalhadores se encontram, sendo submetidos a chantagens caso estejam sem documentos ou tenham um visto de residência vinculado ao empregador.
Segundo um levantamento do sindicato FLAI-CGIL, 400 mil trabalhadores estão sujeitos ao sistema dos caporali a cada ano. Máfias italianas e internacionais se infiltraram em vários estágios da cadeia de abastecimento.
"Modelo precisa mudar"
A experiência de Sagnet o fez acreditar que simplesmente perseguir os caporali não resolveria o problema enquanto a cadeia produtiva continuar a demandar produtos a preços extremamente baixos.
A organização NoCap, fundada por Sagnet, lançou um projeto piloto no ano passado com o objetivo de criar o primeiro selo de ética para ajudar consumidores a optarem por produtos que não envolveram exploração de pessoas. Em cooperação com um produtor, o projeto já produziu mil vidros de purê de tomate com selo ético.
"Estamos adotando uma estratégia que vai mirar as causas, e não os efeitos", afirma Sagnet. "Precisamos chegar à raiz do problema, que são o mercado, os consumidores e os distribuidores de larga escala."
Para Sagnet, o caporalato – sistema que envolve os caporali – é apenas a consequência. "As causas estão baseadas num modelo agrícola e de consumo que precisa mudar."
O objetivo de Sagnet é que a NoCap se transforme numa rede internacional que una todos os atores envolvidos na produção – dos consumidores aos grandes supermercados responsáveis pela distribuição, passando por agricultores e trabalhadores sazonais.
O selo da NoCap visa a certificar, portanto, boas práticas na cadeia de abastecimento alimentar. Para Sagnet, isso ajudaria consumidores a identificarem itens produzidos de maneira ética, supermercados a focarem num novo perfil de consumidores, produtores a decidirem que preço cobrar e trabalhadores a receberem um salário justo.
Quando a época da colheita do tomate começar, em julho, Sagnet espera ter acertado o investimento de uma primeira rede de supermercados em sua ideia e também ter conseguido apoio do governo – especialmente a permissão de uso de prédios confiscados da máfia para abrigar trabalhadores participantes do projeto.
Nova lei ameaça imigrantes
O governo italiano, no entanto, aprovou há pouco uma lei que pode aumentar a quantidade de imigrantes sem documentação no país, fazendo com que seja mais fácil que eles se tornem vítimas de práticas ilegais de emprego.
No último dia 5 de outubro, o ministro do Interior e vice-primeiro-ministro da Itália, Matteo Salvini, publicou um decreto sobre migração e segurança, o qual foi transformado em lei pelo Parlamento em dezembro. A medida aboliu vistos de "proteção humanitária" que a Itália concedia a requerentes de refúgio que não se encaixavam nos critérios para receber status de refugiado ou proteção subsidiária, mas eram reconhecidos como em situação de vulnerabilidade.
De acordo com o Instituto Italiano para Estudos de Política Internacional (ISPI), a nova lei deve dobrar o número de imigrantes sem documentação na Itália nos próximos dois anos, deixando mais 70 mil estrangeiros nessa situação. A nova legislação também impede que aqueles que tinham visto de "proteção humanitária" recebam ajuda.
"Haverá mais escravos à disposição, muitos deles sem documentação. Muitas dessas pessoas vão acabar trabalhando na agricultura", prevê Sagnet.
A nova lei italiana estabelece apenas seis casos especiais em que requerentes de refúgio podem receber proteção. Exploração laboral é uma das categorias, mas como o visto só é válido por seis meses, é improvável que trabalhadores em situação de vulnerabilidade se candidatem a recebê-lo.
"Enquanto supermercados continuarem a impor preços e determinar as regras do mercado, eles vão alimentar um sistema baseado em práticas ilegais", afirma Sagnet. "A agricultura é um sistema em pirâmide, e nós decidimos começar no topo dessa pirâmide, reconhecendo que o problema está nas regras."
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