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Opinião: Ceticismo é oportuno na Argélia

Rainer Sollich (as)

12/03/2019 14h16

Protestos no país continuam apesar de o presidente Abdelaziz Bouteflika ter anunciado que não vai concorrer a um quinto mandato. Há, de fato, bons motivos para prosseguir nas ruas, opina Rainer Sollich.Ao longo de três semanas, dezenas de milhares de argelinos protestaram contra um quinto mandato do seu presidente. Agora, pelo jeito, eles foram ouvidos. "Acompanhei os acontecimentos e entendo os motivos de inúmeros cidadãos que fazem uso dessa forma de expressão", noticiou a agência de notícias estatal da Argélia, de forma um tanto desajeitada, em nome do eterno mandatário Abdelaziz Bouteflika, de 82 anos. O que se seguiu foi uma declaração bem clara: "Não vai haver um quinto mandato."

Era exatamente essa a exigência dos manifestantes. Fica a dúvida se Bouteflika, que está gravemente adoecido, decidiu isso sozinho ou se outros colocaram essas palavras na sua boca. Na televisão estatal da Argélia via-se apenas imagens sem som do presidente. O texto, supostamente escrito por ele, foi lido por outras pessoas.

Os argelinos podem ter orgulho de ter afastado do poder um presidente aparentemente incapacitado com meio pacíficos – ao menos por enquanto – e uma exemplar cultura de protesto da sua sociedade civil. Eles comprovaram de forma impressionante que buscam uma reforma do sistema político e que não vão se contentar com truques baratos. Por isso, voltaram às ruas nesta terça-feira (12/03), ao milhares.

Afinal, o "presente" que lhes foi anunciado em nome do presidente na cadeira de rodas é venenoso: Bouteflika, que é chamado por muitos argelinos de "múmia" ou "marionete", não quer concorrer a um quinto mandato. Só que as eleições em que ele iria concorrer, marcadas para abril, serão adiadas em nome de um prometido processo nacional de reformas.

Ou seja: o quarto mandato de Bouteflika deverá ser postergado mais uma vez, até no mínimo 2020. É compreensível que essa parte do anúncio oficial tenha sido recebida com desconfiança pela população, pois Bouteflika preside o país desde 1999.

Ninguém sabe o que vai acontecer agora. O ministro do Interior, Ahmed Ouyahia, que previu um "cenário sírio" para a Argélia, foi afastado do cargo. A declaração foi entendia como ameaça no país, que passou por uma guerra civil nos anos 1990, com uma estimativa de até 200 mil mortos.

Além disso, há boatos de que o prestigiado diplomata e ex-enviado da ONU para a Síria Lakhdar Brahimi vai desempenhar um papel maior na política argelina.

Ambas as coisas podem ajudar a acalmar a situação, mas nada disso é uma garantia de tranquilidade: um dia depois do anúncio de saída por etapas de Bouteflika, milhares de pessoas voltaram às ruas. E protestos em todo o país foram convocados para esta sexta-feira.

Resta esperar que esses protestos, não de todo compreensíveis, transcorram de forma pacífica e não sejam usados por partes interessadas para incitar ao caos. Os manifestantes também carregam responsabilidade por isso – e mais ainda os governantes. Todo argelino sabe que Bouteflika é, há anos, circundado por um grupo de militares, empresários e membros de partidos políticos e famílias. Além do poder político, eles dividem entre si a riqueza do país.

Essas forças estão realmente dispostas a um recomeço? Elas vão mesmo renunciar a privilégios políticos e econômicos para que a juventude argelina, agora em rebelião, possa ter empregos e uma perspectiva? É o que seria desejável para a Argélia, mas o ceticismo é oportuno – afinal, não se pode descartar que o teatro de marionetes argelino inicie uma nova encenação.

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