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Opinião: É preciso reconstruir prédios e almas na Síria

Marianne Gasser (ip)

15/03/2019 12h09

Cenas de devastação e sofrimento em meio à guerra civil iniciada há oito anos chamam atenção para a necessidade urgente de ajudar a Síria, afirma Marianne Gasser, ex-chefe de delegação da Cruz Vermelha no país.As crianças nas ruas estavam tão desnutridas que mal notaram nossa chegada. Crianças esqueléticas são uma imagem assombrosa. Mas nossa viagem à cidade síria de Madaya, no frio de janeiro de 2016, deixou-me com uma lembrança ainda mais sombria: um porão escuro cheio de crianças de rostos magros e idosos catatônicos, todos com frio, doentes e famintos. Corpos fracos jaziam sobre cobertores azuis no chão de uma clínica subterrânea improvisada, escondendo-se de bombardeios aéreos.

A Síria sofre em meio a um conflito que já dura oito anos. Todas as famílias do país perderam algum parente. Nenhuma família sobreviveu ilesa, seja por deslocamento, lesão, morte ou desaparecimento. Inúmeras casas, hospitais, escolas e instalações de eletricidade e água foram danificadas ou destruídas.

A Síria precisa de ajuda agora. Eu que o diga. Durante os últimos oito anos, a maioria deles como chefe de delegação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), vi o país cruzar a linha aparentemente tênue entre paz agradável e destruição fatal.

Um retorno a uma guerra mais ampla é possível, talvez até provável, se não houver um avanço político e um plano para reparar o que foi destruído, sejam edifícios ou pessoas. Devem ser dadas respostas para as prováveis centenas de milhares que desapareceram, famílias separadas devem ser reunidas, e aqueles sofrendo com feridas psicológicas precisam de apoio para que a cura possa acontecer.

Em suma, o povo da Síria precisa descobrir como coexistir. Nós, trabalhadores humanitários, podemos ajudar no curto e médio prazos. Espero que a comunidade internacional assuma os compromissos necessários para um longo prazo pacífico.

O trauma de Madaya está gravado em minha mente. Durante a nossa visita, uma mãe de seis filhos sussurrou em meu ouvido: "Acabei de perder meu filho mais velho. Ele tinha 17 anos. Por favor, ajude-me a manter vivos os cinco restantes."

Outra mulher, sorrindo, aproximou-se e disse: "Você sabe o que vocês fizeram, vocês, pessoas vindas de fora? Ao conversar conosco, ao lembrar de nós, vocês nos trouxeram outra coisa de volta: nossa dignidade. Obrigada."

Damasco era moderna, vibrante e bonita quando comecei como chefe de delegação do CICV, em 2009. Ninguém sabia que a Síria estava caminhando para a desgraça. Na metade de março de 2011, a violência começou em uma cidade chamada Deraa, a uma hora da capital. Um ano depois, as lutas se espalharam por todo o país.

A devastação e o número de pessoas mortas, feridas e deslocadas foram de partir o coração. Fazendas se tornaram linhas de frente. Azeitonas se transformaram num alimento básico. Milhões de pessoas foram deslocadas, metade da população da Síria. Milhões.

Para as crianças, a escola se tornou uma memória distante. Matemática, história e ciência foram substituídas por lições de guerra: correr, esconder-se, chorar e sobreviver. Muitas crianças com menos de oito anos de idade não conhecem nada além disso.

Anos de combates tornaram alguns dos serviços vitais do país extremamente frágeis, incluindo escolas, unidades de saúde, sistemas elétricos, canais de irrigação e serviços hídricos. Mais de 11,5 milhões de pessoas, agora vivendo em condições precárias, necessitam de ajuda.

Mesmo que ainda haja prédios de apartamentos, casas ou lojas de pé, seus arredores continuam muitas vezes contaminados com restos de explosivos, colocando famílias, particularmente crianças, em sério risco. Resquícios de guerra – incluindo aqueles em campos agrícolas, devem agora ser eliminados com segurança.

Aleppo. Para você, o nome remete a destruição e sofrimento indescritíveis? Para mim, sim.

No final de 2016, bombardeios eram constantes em Aleppo, com morteiros lançados em distritos residenciais. A batalha arrancou o coração da cidade e drenou sua alma.

Sob temperaturas congelantes, equipes do CICV e do Crescente Vermelho Árabe Sírio cruzaram a linha de frente de um mar de escombros. Saímos do carro para agitar a bandeira da Cruz Vermelha, para que todos soubessem quem éramos.

Foi lá que vi uma das cenas mais emocionantes que já testemunhei: milhares de pessoas, principalmente mulheres e crianças, esperando para serem retiradas de lá. Muitos usavam trapos e carregavam sacos velhos. Exaustão, medo, ansiedade e esperança estavam gravados em seus rostos. A destruição espreitava.

Havia muitas crianças, e quase nenhuma delas vestia roupas quentes. Elas estavam em silêncio, sem fazer ruído, sem um sorriso. Seus rostos não tinham expressão alguma.

Esta é a imagem que fica quando a vida é consumida pela violência. Esta é a razão pela qual a Síria precisa reconstruir seus edifícios e almas. Madaya, Aleppo, morte e destruição são um mundo para o qual a Síria não deve retornar.

Marianne Gasser atuou como chefe de delegação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) na Síria de 2009 a 2013 e de 2015 a 2019.

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