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Os erros e acertos no projeto de Brasília

Esplanada dos Ministérios e Congresso Nacional, em Brasília - Ricardo Moraes
Esplanada dos Ministérios e Congresso Nacional, em Brasília Imagem: Ricardo Moraes

Edison Veiga

21/04/2020 07h17

Inaugurada há 60 anos, cidade projetada para ser capital é reconhecida como Patrimônio da Humanidade desde 1987. Apesar de sua monumentalidade única, acabou vivendo crescimento desordenado e segregando os mais pobres.

"Viramos no dia de hoje uma página na história do Brasil? Damos por cumprido o nosso dever mais ousado, o mais dramático dever. Neste dia, consagrado ao alferes José Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes, no 138º ano da Independência e 71º da República, declaro, sob a proteção de Deus, inaugurada a cidade de Brasília, capital dos Estados Unidos do Brasil."

Foi com essas palavras que o então presidente, Juscelino Kubitschek (1902-1976), inaugurou, há exatos 60 anos, a nova capital federal do Brasil.

Instalada no Planalto Central, era a concretização de uma ideia que permeava o governo brasileiro desde os tempos coloniais: que a capital administrativa do país ficasse no centro territorial, "protegida" das fronteiras.

E o projeto foi feito com maestria: com plano urbanístico concebido por Lúcio Costa (1902-1998) e elementos arquitetônicos criados por Oscar Niemeyer (1907-2012), a capital federal do Brasil já nasceu icônica, embora cheia de problemas.

"[Ao longo do seu desenvolvimento,] Brasília padece de todos os problemas da cidade capitalista contemporânea", aponta à DW Brasil o arquiteto e urbanista Valter Caldana, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

"As contradições do modelo de desenvolvimento brasileiro estão lá: o espraiamento, o extrativismo em termos de consumo de terra e de infraestrutura, o rodoviarismo, a segregação. Em resumo, um modelo caríssimo para quem paga e perverso para quem vive."

Para Caldana, o grande problema foi que "fizemos uma coisa in vitro, botamos uma redoma em volta, e deixamos lá, no freezer a 273 graus negativos". "Isto potencializa acertos, é verdade, mas também potencializa erros", comenta ele. "Brasília se congelou e, assim, sua evolução acabou sendo distorcida."

Entorno, a segregação

O arquiteto e urbanista Lucio Gomes Machado, professor da Universidade de São Paulo (USP), afirma à DW Brasil que a superpopulação não prevista causou as discrepâncias vistas hoje na cidade. "O plano diretor não resolveu bem a habitação para as classes de menor poder econômico. As poucas superquadras com este destino foram apropriadas pela classe média."

O que aconteceu foi um crescimento desordenado. "Brasília cresceu muito mais do que se imaginava. Por isso, fica impossível ter controle", diz à DW Brasil o arquiteto e urbanista Gilberto Belleza, professor do Mackenzie. "Nasceu uma situação que acaba dificultando a própria vivência da cidade."

"As cidades-satélites não deveriam ter surgido como uma periferia da cidade", diz à DW Brasil o arquiteto e urbanista Henrique de Carvalho, autor do blog Sobre Cidades e pesquisador na USP. "Essas cidades começaram para hospedar os trabalhadores, que depois imaginavam habitar Brasília. Mas, depois da inauguração, eles foram segregados, continuaram expulsos. Então, o processo de periferização típico das cidades brasileiras se repetiu em Brasília."

Para ele, o crescimento precisaria ter sido conduzido de forma planejada, com pequenos núcleos de cerca de 200 mil habitantes, ainda que nas regiões de subúrbio, mantendo a essência do planejamento original.

Carvalho lembra que se trata de um fator "antropológico, humano, e não do projeto". "Tudo aquilo que o Brasil precisa ser e não é também se repete em Brasília", afirma.

Machado lembra que o plano-piloto da nova capital previa uma cidade para 500 mil habitantes. "Durante a ditadura, governadores do Distrito Federal, nomeados, e depois da redemocratização, já eleitos, fizeram o que puderam para expandir a população das cidades-satélites com favelização, distribuição gratuita de lotes, e por aí vai", contextualiza.

"Tudo que de pior conhecemos no não planejamento das cidades brasileiras foi feito nas cidades-satélites, chegando a 3 milhões de habitantes."

"Brasília é a cidade brasileira com maior renda média --resultado de uma incrível elite burocrática que se expandiu nas últimas três décadas-- servida por uma legião de pobres moradores das cidades-satélites", define o urbanista.

Esse cenário causa a necessidade de deslocamentos antes não previstos, justamente porque essa população pobre do entorno acaba trabalhando em serviços para os que vivem na parte central.

"Metrô ficou imprescindível. E a estrutura do plano-piloto e do Distrito Federal como um todo seriam adequados para uma boa rede de metrô", analisa Machado. "O problema é que isso não foi feito para valer. O resultado é que a cidade de vanguarda passou a ser uma cidade com problemas."

"Cidades segregadoras acabam gerando todo tipo de segregação, não só econômica, mas de gênero, de raça, de idade, de culturas", acredita Caldana. "Isso é sempre prejudicial."

Patrimônio Cultural da Humanidade

Machado reconhece, no entanto, que Brasilia continua a ser uma cidade excepcional "pela sua espacialidade e pela sua escala". "É a mais importante realização urbanística do século 20", considera.

Ele aponta que muitas outras cidades foram projetadas antes e depois, "mas nada foi mais importante". "Dentre as brasileiras, podemos lembrar de uma infinidade, como Belo Horizonte, Goiânia, Londrina, Maringá? O que Brasília tem de diferente? Foi resultado de um concurso público, julgado por um júri internacional, com várias outras propostas concorrentes notáveis que poderiam ser implantadas com sucesso."

Para o professor da USP, Lúcio Costa adotou o que havia de mais relevante dentre as discussões do urbanismo da época.

"A junção do conceito de zoneamento das cidades —habitação, trabalho, lazer— ao eixo monumento institucional de forma harmônia, a partir do gesto inicial, a cruz: em nenhum outro projeto de cidade a ideia de como organizar a habitação foi tão bem resolvida como nas superquadras", diz.

"O Eixo Monumento com a Praça dos Três Poderes combinaram brilhantemente o urbanismo de Lúcio Costa com a arquitetura de Oscar Niemeyer."

O reconhecimento foi internacional. Desde 1987, Brasília está inscrita como Patrimônio Cultural da Humanidade da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

"É uma cidade única, que jamais pode ser analisada como qualquer outra: tem características especiais e específicas", comenta Caldana. "A começar por seu caráter simbólico, institucional. Brasília é o resultado e o símbolo maior da capacidade empreendedora de uma nação, de um povo, de um Estado."

"Brasília tem uma escala monumental, apropriada para uma capital. Nem todos os países têm uma capital com a qualidade imagética de Brasília. Poucas cidades do mundo têm uma imagem assim: isso é motivo para nos orgulharmos", diz Carvalho. "Essa monumentalidade é muito apropriada para uma capital, serve bem de cenário e se presta para essa função, até teatral, da liturgia do poder."

Outro aspecto positivo destacado pelos especialistas é a relação espacial entre os elementos, seja na proporção dos prédios, seja nos espaços públicos arborizados amplos. "Hoje em dia, quando vemos uma imagem aérea da cidade, feita por um drone, percebemos uma relação saudável entre os edifícios. E uma boa relação do morador com seu espaço", afirma Belleza.

Registro de uma época

Além de ser um patrimônio brasileiro, Brasília é um registro histórico vivo de uma época do país. Antes mesmo de ser inaugurada, a capital já inspirava o imaginário popular e artístico. Desde 1958, provocados por Niemeyer, Vinicius de Moraes (1913-1980) e Tom Jobim (1927-1994) pensavam em criar uma obra musical para a nova cidade.

"Numa tarde de fevereiro de 1958, eu, num hospital de Petrópolis, todo arrebentado por um desastre de automóvel, animava meu amigo e parceiro que me fora visitar, Antonio Carlos Jobim, a tocar para diante a ideia de escrever uma sinfonia sobre Brasília", conta Moraes, no livro Samba Falado: Crônicas Músicas.

Em setembro de 1960, cinco meses após a inauguração da cidade, ambos foram conhecer a nova capital, a bordo do fusca de Jobim. A obra, batizada de Brasília: Sinfonia da Alvorada, foi concluída pouco depois e gravada em novembro de 1960.

"Foi necessário muito mais que engenho, tenacidade e invenção. Foi necessário 1 milhão de metros cúbicos de concreto, e foram necessárias 100 mil toneladas de ferro redondo, e foram necessários milhares e milhares de sacos de cimento, e 500 mil metros cúbicos de areia, e 2 mil quilômetros de fios", diz trecho da sinfonia.

"Foram necessários 60 mil trabalhadores vindos de todos os cantos da imensa pátria, sobretudo do Norte! 60 mil candangos foram necessários para desbastar, cavar, estaquear, cortar, serrar, pregar, soldar, empurrar, cimentar, aplainar, polir, erguer as brancas empenas?"