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1987: Lançamento de "Asas do Desejo"

Soraia Vilela

17/05/2020 05h14

1987: Lançamento de "Asas do Desejo" - O filme "Asas do Desejo", de Wim Wenders, teve sua estreia mundial em 17 de maio de 1987 no Festival de Cannes. Os anjos pairaram sobre uma cidade de perfil bem distinto daquele que a capital alemã tem hoje.No 17 de maio de 1987, Asas do Desejo, do cineasta alemão Wim Wenders, estreava no Festival Internacional de Cannes. Mais de duas décadas depois, os temores do diretor de que o filme fosse mal compreendido por público e crítica não passam de uma pálida lembrança.

O longa tornou-se não apenas um clássico da história da sétima arte, mas talvez a realmente última grande obra cinematográfica de Wenders. E, acima de tudo, um dos mais belos registros de uma Berlim que há muito deixou de existir.

Os anjos que sobrevoavam a cidade dividida, desejando experimentar a intensidade da dor e do delírio humano, rodaram o mundo. Asas do Desejo (ou "O céu sobre Berlim", na tradução fiel do original Der Himmel über Berlin) tornou-se um must entre cinéfilos mundo afora.

Wenders levou o prêmio de melhor direção em Cannes e o filme foi, em seguida, exibido em mais de 80 salas dentro da então Alemanha Ocidental. Fora do país, a recepção foi tamanha que o longa chegou a ficar em cartaz mais de um ano no Japão.

Arquitetura de luz e sombras

"Em outra cidade que não fosse Berlim, eu jamais teria tido a idéia de fazer um filme como este", afirmava o diretor 20 anos depois, ao diário Berliner Morgenpost.

Certamente nenhuma outra cidade teria oferecido às lentes do fotógrafo Henri Alekan uma paisagem urbana tão abandonada, exatamente onde as referências à história eram tão marcantes, como na Potsdamer Platz, por exemplo. Da mesma forma, certamente nenhum outro fotógrafo teria captado a textura da cidade com tamanha sutileza quanto Alekan.

"Sua luz criou um novo espaço, no qual existia também outro tempo e no qual se falava outra língua, uma língua mais poética. Henri criou uma arquitetura de luz e sombras, construindo um equilíbrio marcadamente complexo entre tons claros e escuros, do mais profundo negro ao mais claro branco", dizia Wenders seis anos mais tarde, na entrega do Prêmio Wilhelm Murnau ao fotógrafo francês, em 1993.

"Se hoje, no fim da minha carreira, olho para trás, o filme mais importante que fotografei, a coroação do meu trabalho, foi Asas do Desejo", respondia Alekan a Heidi Wiese, em declaração publicada no volume A Metafísica da Luz, antes de sua morte em 2001, aos 92 anos.

Cidade do preto-e-branco

As imagens do filme fotografadas por Alekan, quase todas em preto-e-branco, são um registro sensível e raro das muitas faces de Berlim, maquiadas desde a reunificação do país: o Muro como cicatriz viva da Guerra, a solidão de uma Potsdamer Platz gélida e vazia, uma Anhalter Bahnhof perdida e a deserta paisagem de Prenzlauer Berg, preenchida apenas por alguns trabis, os carros típicos do Leste alemão.

Esta seqüência "do outro lado do Muro", na então Alemanha de regime comunista, "foi rodada por um fotógrafo de Berlim Oriental. Não pudemos colocar o nome dele nos créditos, pois ele havia feito as imagens escondido e nos cedido secretamente", contou Wenders ao jornal Berliner Zeitung.



A Berlim Ocidental era aquela de Nick Cave e dos shows embaçados nos galpões mal-iluminados, como o que se vê no filme. Sem Nick Cave, disse Wenders ao Die Zeit, "não teria havido (pelo menos não para mim) a sensação de que aquela cidade ilhada era, ao mesmo tempo, o centro do mundo. Este australiano soturno e seu guitarrista Blixa Bargeld fizeram ali uma música que conseguiu definir melhor aquele tempo do que qualquer outra música qualquer outro lugar".

Clássico da história do cinema

Embora todas essas imagens se tornem cada vez menos compreensíveis para o espectador de hoje, devido à distância do tempo e às constantes mudanças da cidade nos últimos anos, Asas do Desejo é um desses filmes que, como Paris, Texas ou Alice nas Cidades – para se ater apenas a Wenders – "ficam".

Os anjos Damiel e Cassiel ficam, mesmo que o rosto do ator Bruno Ganz esteja hoje mais associado à Queda de Hitler, mesmo que o purismo estético de Henri Alekan venha se tornando cada vez mais raro na era da tecnologia e dos retoques milagrosos da pós-produção, mesmo após a morte prematura, em janeiro de 2007, da atriz Solveig Dommartin, a trapezista por quem o anjo Damiel se apaixona no filme.

Este "Céu sobre Berlim" entra como clássico para a história do cinema, porque conseguiu cartografar magistralmente a singularidade de Berlim nos anos que antecederam a queda do Muro. Conseguiu fazer com que o espectador fosse levado, se não de fato, pelo menos em sonho à cidade dividida, isolada e única. Levado até lá, nas asas do desejo, para passar a saber, assim como Damiel na última cena do filme, "o que nenhum anjo sabe".
Autor: Soraia Vilela