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O fim do monopólio russo no espaço

Roman Goncharenko (rpr)

31/05/2020 12h16

O fim do monopólio russo no espaço - EUA estão retomando as viagens espaciais tripuladas com naves americanas após quase uma década contando com a ajuda russa para chegar à ISS. A era da cooperação espacial entre Moscou e Washington está perto do fim.Nos últimos nove anos, só a Rússia era capaz de transportar astronautas até a Estação Espacial Internacional (ISS). Porém essa era de domínio russo chegou ao fim no sábado (30/05), quando o foguete americano Falcon 9 lançou dois astronautas ao espaço sideral, a bordo da cápsula Crew Dragon.

A Nasa, agência espacial americana, não desenvolve nenhuma nave própria desde o último voo do ônibus espacial, em julho de 2011. Em princípio, essa abordagem não mudou, pois a nave Crew Dragon foi produzida pela SpaceX, a empresa privada fundada pelo chefe da Tesla Elon Musk. A empresa mantém a propriedade da espaçonave.

A gigante aeroespacial Boeing também quer realizar voos espaciais não tripulados antes do fim deste ano, utilizando sua espaçonave Starliner, e visa iniciar os voos tripulados em 2021.

Estes acontecimentos fazem mais do que marcar o retorno dos EUA ao clube de elite das nações que podem transportar humanos para o espaço, o qual atualmente inclui Rússia e China. Se os americanos também conseguirem desenvolver duas naves espaciais diferentes capazes de realizar tal façanha, ele assumiria a liderança numa corrida não oficial, e a Rússia teria que enfrentar um novo competidor.

Mas nas últimas décadas Rússia e EUA não se viam como rivais espaciais. Após o colapso da União Soviética, floresceu a cooperação entre as duas nações em voos espaciais tripulados. Os ônibus espaciais americanos voaram para a estação espacial russa Mir, e suas tripulações também incluíam cosmonautas russos.

Após a virada do milênio, naves espaciais russas com astronautas americanos a bordo decolaram regularmente da base de Baikonur, no Cazaquistão, rumo à ISS. A Rússia só ganhou o monopólio das viagens espaciais após o desastre do Columbia, em 2003, quando o ônibus espacial americano se desintegrou minutos antes de pousar na Flórida, matando todos os sete tripulantes. Consequentemente, os EUA suspenderam seus voos espaciais por dois anos.

Mesmo depois disso, Moscou teve que agir como um "táxi" para viagens espaciais por um bom tempo. "A Rússia não podia dizer não", diz Igor Marinin, membro da Academia Russa de Viagens Espaciais. "Era impossível manter a ISS operacional sem os americanos, porque o módulo russo não podia viajar pelo espaço de forma autônoma."

Nos últimos nove anos, houve cerca de 40 lançamentos bem-sucedidos da nave espacial russa Soyuz com astronautas americanos a bordo – quatro vezes por ano, em média., o que teria levado a indústria russa a seus limites, segundo Marinin.

Também nem sempre a navegação entre a Nasa e a agência espacial russa Roscosmos foi suave, como revelou um incidente no verão de 2018. Uma cápsula da Soyuz acoplada à ISS sofreu uma queda de pressão, um buraco foi encontrado e teve que ser selado. A Roscosmos sugeriu publicamente que o buraco foi um ato de sabotagem e ordenou uma investigação. A imprensa russa, por sua vez, circulou rumores de que a agência espacial nacional apontava para os astronautas americanos como a fonte do vazamento – alegações que os americanos rejeitaram. A Nasa disse mais tarde que apoiaria a investigação do Roscosmos.

Outro incidente aconteceu em outubro de 2018, quando um foguete auxiliar (booster) da Soyuz falhou logo após a decolagem. Um sistema de emergência entrou em funcionamento e salvou as vidas do cosmonauta russo e do astronauta americano a bordo. Na Rússia, o incidente foi visto como prova de que a tecnologia era confiável. "O sistema provou que é robusto", comentou o astronauta alemão Thomas Reiter, que já havia viajado a bordo da nave espacial Soyuz.

Uma cápsula da Soyuz pode transportar até três pessoas e, com o tempo, a Roscosmos elevou o preço da "passagem espacial". De acordo com fontes americanas, uma viagem para a ISS de ida e volta costumava estar disponível por US$ 21 milhões. Recentemente, a agência russa passou a exigir US$ 80 milhões. Atualmente, os russos e americanos concordaram em apenas mais um voo, marcado para o segundo semestre de 2020, ao preço de US$ 90 milhões.

ISS: uma ilha de cooperação

O desgaste político entre Moscou e Washington, desencadeado pela anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, afetou todos os aspectos da relação bilateral – exceto a cooperação relacionada ao programa ISS. Apenas uma vez, na primavera de 2014, o então vice-primeiro-ministro e atual chefe da Roscosmos, Dmitry Rogozin, advertiu os EUA de que o transporte de astronautas para a ISS poderia ser encerrado.

Mas essa ameaça é coisa do passado. Em recente conversa ao vivo com a equipe da ISS, o presidente russo, Vladimir Putin, elogiou a "parceria eficaz" entre Rússia e EUA. "Há uma total concordância com os americanos", confirma Marinin, mas isso só se aplicou às viagens espaciais tripuladas, e não ao uso comercial e militar do espaço sideral.

A competição relacionada às missões comerciais tem aumentado. Por exemplo, o SpaceX vem colocando a Rússia sob considerável pressão na área de lançamentos de satélites. Além disso, tanto a Rússia quanto os EUA estão avançando na tecnologia militar para o espaço.

Com exceção dos voos tripulados, há muito as viagens espaciais russas estão numa posição mais fraca do que as americanas. O monopólio russo tornou possível esconder esse fato, afirma o especialista em viagens espaciais Andrei Ionin: "A cortina final que escondia a perda de motivação e a tecnologia obsoleta está agora sendo levantada. O governo vai perceber que o rei está nu."

O especialista estima que a Rússia ficará para trás muito rapidamente, principalmente em comparação com o SpaceX. Ionin também espera que essa nova competição force o governo russo a aproveitar as possibilidades existentes para reformar a Roscosmos.

Lugares vagos na Soyuz?

Na esteira do voo da Crew Dragon, os EUA provavelmente reduzirão sua cooperação com a Rússia na área de viagens espaciais tripuladas. Segundo Marinin, as novas cápsulas americanas oferecem espaço para o dobro de passageiros e são mais modernas e confortáveis do que suas equivalentes russas, cuja construção ainda é baseada em soluções técnicas dos anos 1960. Mas ele acredita que a nave espacial Soyuz tem uma vantagem capaz de se manter ainda alguns anos: sua confiabilidade, comprovada ao longo de décadas.

As operações da ISS têm continuidade garantida até 2024. Até lá, a Nasa vai depender cada vez menos da ajuda da Rússia para enviar astronautas ao espaço sideral. Isso, por sua vez, abriria capacidades para europeus e turistas espaciais.

A Rússia já anunciou que retomará o transporte de pessoas privadas para o espaço em 2021. Marinin também espera que capacidades adicionais sejam dedicadas ao desenvolvimento da nova nave espacial Oryol (águia), cujo voo inaugural está programado para 2023.

Em geral, a era da cooperação estreita entre Moscou e Washington na pesquisa espacial parece estar chegando ao fim. Os EUA pretendem viajar novamente à Lua – um objetivo compartilhado pela Rússia, que também planeja construir sua própria estação espacial para substituir a ISS.

Ionin alerta que a maior conquista do programa ISS poderia, assim, se perder: a "inestimável experiência de cooperação". Um retorno às nações explorando sozinhas o espaço sideral seria um passo atrás, de volta à corrida espacial dos anos 1960.

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Autor: Roman Goncharenko (rpr)