Topo

O olhar de uma estrangeira sobre a cultura da memória alemã

Dana Regev (av)

14/07/2020 16h12

O olhar de uma estrangeira sobre a cultura da memória alemã - Vivendo há seis anos na Alemanha, a jornalista israelense Dana Regev observa como os alemães lidam com seu passado. "Eu os respeito por assumir a responsabilidade pelos próprios atos. Outros estão longe disso."Não importa de onde se venha, cada país pratica algum tipo de cultura da memória. Ela pode se expressar em feriados nacionais ou em monumentos e memoriais de personalidades históricas importantes. Mas quem já passou algum tempo na Alemanha em algum momento notou que o alemães se ocupam de seu passado de forma diversa de outros países, por motivos compreensíveis.

Como nem sempre é fácil entender de que modo eles o fazem, é importante conhecer os aspectos a seguir.

1- Para muitos, a bandeira alemã é constrangedora

Quando um país vence a Copa do Mundo de Futebol, normalmente a primeira coisa que seus cidadãos fazem é pendurar a bandeira nacional na janela, ou agitá-la de dentro de seus automóveis. Até alguns anos atrás, isso não acontecia na Alemanha.

Aqui, os símbolos nacionais não são vistos com orgulho, mas como advertência. Ser responsável pelo Holocausto e pelo primeiro genocídio do século 20 – contra as etnias herero e nama, na atual Namíbia – marca muito fortemente o sentimento coletivo.

A realização do Mundial na Alemanha em 2006 foi, de fato, um fenômeno absolutamente novo. "Não se via tanto negro-rubro-ouro desde a Reunificação", escreveu a revista Der Spiegel, referindo-se às numerosas bandeiras alemãs ornamentando carros, varandas, chapéus e cachecóis dos torcedores. Em reação à nova tendência, diversos especialistas em cultura se pronunciaram na época sobre a difícil relação dos alemães com o patriotismo.

Desde então, a bandeira alemã é cada vez mais apreciada em eventos esportivos, mas no dia a dia do país continua sendo raramente avistada. Realmente, é mais provável ver pendendo de um balcão a bandeira da União Europeia ou de arco-íris, símbolo do movimento LGBT, do que a nacional.

"Simplesmente não fazemos isso, não crescemos assim", explica Jessica, uma dona de café de 38 anos, de Colônia. "Por causa do passado alemão, muitos não são exatamente orgulhosos de coisas que representem a Alemanha. Acho que é melhor do que patriotismo cego."

2- Informação precoce sobre fatos históricos

Saber algo sobre a história alemã, em especial sobre a Segunda Guerra Mundial, não é privilégio de acadêmicos e frequentadores de museus. E os museus históricos estão cheios de escolares que, já a partir dos 12 anos de idade, aprendem sobre o domínio nazista e suas atrocidades.

"A cultura da memória é um recurso que contribui para manter coesa a nação, para dar aos cidadãos um passado 'comum'", explica Mike Stuchbery, professor australiano de história e estudos sociais residente em Stuttgart.

Paul Koch, especialista em TI de 33 anos, de Berlim, se recorda "que me ensinaram detalhadamente sobre a Segunda Guerra Mundial pelo menos três vezes no ensino médio. Além disso, visitamos um campo de concentração".

Para ele, está claro por que a cultura da memória é mais marcante em seu país do que em muitos outros: "A Alemanha foi responsável por crimes inimagináveis. Não só a Alemanha nazista: a Alemanha", frisa. "Por isso, não é de espantar que nos ensinem tantas vezes a respeito."

Stuchbery concorda: "Essa geração de alemães se impôs o desafio de descobrir como pode reconhecer os horrores do passado e manter viva a lembrança deles. Centros de documentação, monumentos – como o dos judeus assassinados da Europa, em Berlim, e o memorial do campo de concentração de Dachau, perto de Munique – são a tentativa de manter um equilíbrio entre a admissão de atos terríveis e sua classificação contextualizante."

Koch recorda como alguns de seus antigos colegas de classe reclamavam na época que estavam fartos de ouvir falar das crueldades dos alemães. E vira os olhos ao acrescentar: "Mas eles não entendem que não repetimos isso só porque somos alemães, mas que nosso passado é um terrível exemplo do que pode acontecer em outros lugares, também no presente."

3- Honrar a pena, não as armas

Os alemães sabem a que pode levar a glorificação de um líder político. Por isso, seus heróis são sobretudo escritores ou compositores, não militares de alta patente.

Weimar é hoje conhecida internacionalmente como cidade de Goethe; a casa em que morou o poeta e erudito universal foi transformada em museu nacional. Na antiga capital Bonn, cidade natal de Beethoven, encontram-se numerosas estátuas do compositor. Monumentos a Johann Sebastian Bach e Martinho Lutero dão boas-vindas aos visitantes em Eisenach, onde o compositor nasceu e o líder religioso viveu alguns anos.

"Eu prefiro que seja assim", admite Jessica, de Colônia. "Na guerra não há mesmo vencedores, e se é para exibirmos símbolos publicamente, então que sejam aqueles sobre os quais todos – ou quase todos – estejam de acordo."

Stuchbery acrescenta: "No contexto do [movimento antirracista] Black Lives Matter e o novo olhar sobre o passado, será interessante ver como outros episódios da história alemã serão apresentados e relembrados."

4- Piadas nem sempre são bem-vindas

Sou judia israelense, meus pais deixaram a Alemanha antes do começo oficial da Segunda Guerra. Mas, mesmo já vivendo na Alemanha há seis anos, me surpreende que eu consiga lidar melhor com humor ácido – e estou falando de humor muito ácido mesmo – do que o alemão médio.

No melhor dos casos, os alemães reagem a algumas de minhas piadas ficando da cor de tomate; no pior dos casos se sentem extremamente atacados ou ficam muito confusos, sobretudo sendo algo que tenha, de alguma maneira, a ver com o Holocausto.

Portanto se você visita a Alemanha como turista, acabou de se mudar para uma cidade alemã ou tem um colega alemão, não mexa sem refletir com as atrocidades passadas do país. Pelo menos até todos saberem que você não um radical de direita.

Isso porque infelizmente ainda hoje em dia há muitos adeptos alemães da ideologia de direita. Aliás: a saudação hitlerista, mesmo que feita de brincadeira, é proibida em locais públicos.

No fim das contas, eu respeito os alemães por pelo menos assumir a responsabilidade pelos próprios atos. Muitos outros países que já prejudicaram mais do que o suficiente a humanidade não estão tão empenhados em assumir a própria culpa. E muito menos em transmitir à gerações seguintes um "nunca mais".

______________



A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas. Siga-nos no Facebook | Twitter | YouTube
| App | Instagram | Newsletter


Autor: Dana Regev (av)