[Coluna] Nem toda a polícia, mas sempre a polícia
[Coluna] Nem toda a polícia, mas sempre a polícia - Aumento da letalidade policial em estados geridos pela direita e pela esquerda indica que, no Brasil, a violência e a ordenação racista na segurança pública não são um problema de governo, e sim questão de Estado.Essa semana começou com importante pesquisa feita pelo Instituto Datafolha: 51% dos brasileiros dizem ter mais medo da Polícia Militar, do que confiança na instituição. Um percentual significativo, que diz muito sobre a escalada de violência que vem assolando o Brasil, mas que também aponta questões que não deixam dúvida: a segurança pública segue ordenada pelo racismo.
Recentemente, alguns casos ganharam significativa repercussão nos veículos de notícia do país. Em novembro deste ano, um policial que estava de folga matou, com 11 tiros nas costas, um rapaz que havia furtado uma caixa de sabão em pó em São Paulo. Menos de um mês depois, novamente em São Paulo, um policial em serviço jogou um homem de uma ponte. Lidos de maneira isolada, ambos os casos podem ser entendidos como situações expecionais. E essa foi a resposta que a Polícia Militar do Estado de São Paulo deu, depois de afastar os policiais envolvidos em ambos os casos.
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Para os que estão mais atentos às notícias diárias, esses casos se juntam a centenas de outros, que foram responsáveis pelo significativo aumento das mortes cometidas por policiais em São Paulo: nos primeiros oito meses de 2024 foram registradas 441 mortes, um aumento de quase 60% se comparado ao mesmo período de 2023. Não há dúvidas que esse número diz muito sobre as políticas que o atual governo de São Paulo está implementando no campo da segurança pública. Mas, e infelizmente, o estado de São Paulo não está sozinho.
De acordo com 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, entre os anos de 2013 e 2023, a letalidade policial no Brasil aumentou em 188%, fazendo com que o número de mortos por intervenção policial se compare ao número de vitimas fatais em países em guerra.
A distribuição dessas mortes não é a mesma entre os estados brasileiros. Para o ano de 2023 foram registradas 6.393 mortes. A Bahia lidera em números absolutos, com 1.699 mortes, 46% a mais do que as mortes causadas por policiais de todo os Estados Unidos. Em seguida vêm os estados do Rio de Janeiro (871), Pará (525), e São Paulo (460). E como já era de se imaginar, 82% das vítimas dessas ações são pessoas negras. Só isso explica a passividade com a qual a maior parte dos brasileiros encara a violência policial.
Ainda que seja fundamental fazer estudos mais detalhados dessa recente série histórica do crescimento da letalidade policial no Brasil – afinal alguns estados demonstram queda nos números, enquanto outros seguem apostando na truculência policial como política pública –, é importante frisar que os números são alarmantes tanto nos estados governados pela direita, como no estados governados pela esquerda. Isso nos leva a pensar que, no Brasil, a violência e a ordenação racista na segurança pública não são um problema de governo, mas sim uma questão de Estado, que atravessa (e une) o país inteiro.
Essa constatação é fundamental para o redesenho das políticas públicas e, sobretudo, da formação da Polícia Militar no Brasil. Algumas ações junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública estão sendo tomadas nesse sentido. Vale também pontuar iniciativas de alguns membros da corporação, na tentativa de frear a letalidade, por meio de uma compreensão mais profunda dos próprios policias de que a Polícia Militar é uma instituição forjada pelo racismo. Mas isso é muito pouco frente ao tsunami de violências que ordena a Polícia Militar, e que segue matando a torto e a direito a população negra brasileira, sobretudo os jovens que morrem antes mesmo de terem a possibilidade de acessar as políticas de ação afirmativa tão importantes na luta pela equidade racial no país.
Já escrevi isso aqui mais de uma vez, mas nunca é demais lembrar: a Polícia Militar é uma instituição que, no Brasil, teve sua criação vinculada à manutenção da ordem escravista e racista. Dito de outra forma: era a polícia que saia às ruas das principais cidades transformando a ideologia do racismo em prática cotidiana em nome do Estado nacional brasileiro. Claro que sempre existiram excessos e perversões de sujeitos específicos. Mas toda a corporação foi talhada pelo racismo. E, de acordo com os números mais recentes, essa perspectiva nunca foi alterada. Todo negro era e continua sendo um suspeito em potencial, uma vida que vale pouco ou quase nada, podendo ser reduzida a números e estatísticas. Não é por acaso que "todo camburão tem um pouco de navio negreiro".
A questão que urge é: até quando? Até quando as ações do braço armado do Estado serão pautadas pelos mesmos pressupostos que sustentaram a escravidão do país? Até quando a segurança pública brasileira seguirá apostando no racismo como forma de fazer política pública?
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.Autor: Ynaê Lopes dos Santos