"La Bestia", uma roleta russa para alcançar um sonho
Isabel Reviejo.
Amatlán de los Reyes (México), 19 jun (Minds/EFE).- "Deixe que ela te alcance, não tente alcançá-la". Quando "La Bestia" surge entre a vegetação, com seu estrondoso apito, o aumento da adrenalina não pode atrapalhar o procedimento, em que os segundos são preciosos. Um erro pode ser mortal.
Antes do trem chegar, é preciso começar a correr. Cerca de 20 metros, tomando velocidade, olhando rapidamente para trás para saber qual será o vagão no qual subir. E assim que ela passa, é hora de se agarrar firmemente aos degraus.
Fredy Naún Hernández, um hondurenho que conhece bem o modo de subir em "La Bestia", a rede de trens de carga que milhares de migrantes utilizam como modo de transporte para atravessar o México rumo aos Estados Unidos, viaja tranquilo.
Em sua mochila há espaço para um casaco, um cobertor - "nas madrugadas faz bastante frio" - e alguns poucos objetos de higiene pessoal. Não leva nenhuma lembrança da sua família. "Tudo no coração", disse, com um sorriso.
É a terceira vez que Fredy tenta completar a viagem de sua Honduras natal até os EUA. Na última vez foi detido no Texas, após cruzar as águas do Rio Bravo (chamado de Rio Grande pelos americanos).
Agora, acompanhado de seu primo Miguel Ángel, diz que subir em "La Bestia" é "um jogo de acaso, como uma roleta russa".
No pequeno albergue de Las Patronas, no estado de Veracruz, onde um mural da geografia mexicana exibe as artérias de "La Bestia" lembrando que "os sonhos também viajam", Fredy contou à Efe quais serão suas próximas paradas: Cidade do México, San Luis Potosi, Saltillo e Nuevo Laredo, de onde cruzará a fronteira para chegar a Laredo, no Texas.
Boa parte dos migrantes que a cada ano percorre o México - a Anistia Internacional calcula que são 400.000 ao ano - sobe ao trem cargueiro em Tenosique (Tabasco) ou Tapachula (Chiapas).
Os pontos aos quais estas pessoas chegam, em sua maioria procedentes de Guatemala, Honduras e El Salvador, assim que chegam à fronteira são diversos, dependendo se optaram pela rota do Pacífico (oeste), a central ou a do Golfo (leste).
Em Tijuana fica um dos atuais muros que separam o México dos EUA, em Nogales é preciso encarar duras jornadas no deserto, e no leste o desafio é cruzar o Rio Bravo.
Os caminhos percorridos pelos migrantes podem chegar a somar 3.000 quilômetros; a rota do Golfo, que termina no estado de Tamaulipas, é a mais rápida e a mais perigosa, devido à presença do crime organizado.
A opção de "La Bestia" não é a única para atravessar o México. Ainda que Fredy sempre faça a rota em trem, reconhece que o ônibus é um transporte muito mais seguro. "Quem vai te assaltar no ônibus?", se perguntou.
"Mas sempre que você vai comprar uma passagem de ônibus, deve apresentar a identificação, e podem te prender", argumenou.
Pendurados durante dias no teto do trem ou nos espaços entre vagões, os migrantes de "La Bestia" apenas descansam. "Dormimos na margem da via, estendemos uma barraca ali, nos deitamos, e isso é tudo", contou Fredy.
Se há algo que ameace o sonho, além do risco das quedas - que matam ou mutilam muitos migrantes - é a incerteza sobre quem pode subir no trem ou se haverá um controle migratório surpresa.
Fredy disse que em algumas ocasiões há operações de agentes do Instituto Nacional de Migração no meio da noite. Na última, uma jovem caiu de "La Bestia" e morreu.
"Não somos animais para que queiram nos apanhar como um cervo", lamentou.
As autoridades mexicanas reforçaram a vigilância com o Plano Fronteira Sul, apresentado em 2014. Nesse mesmo ano, o secretário de governo, Miguel Ángel Osorio, disse que seriam tomadas ações para que os migrantes não viajassem no trem, pelos riscos no trajeto, em que descarrilamentos são frequentes. Apesar disso, eles não deixaram de subir em "La Bestia".
Camuflado sob o nome falso de Aimar Blanco, o escritor e ativista Flaviano Bianchini decidiu anos atrás ignorar seu passaporte italiano e viajar em "La Bestia" se fazendo passar por um migrante.
Durante o seu trajeto de 21 dias, que relatou no livro "El camino de La Bestia" (2016), o autor repetia como uma mantra dois lemas. O primeiro: "não caia no sono". O segundo: "não confie em ninguém".
Os frequentes assaltos cometidos por grupos armados fazem com que seja fácil que um migrante perca suas economias muito antes de chegar ao destino. Para pagar os serviços dos "coiotes", alguns se veem forçados a fazer trabalhos para membros do crime organizado.
As forças de segurança corruptas também se aproveitam da vulnerabilidade dos migrantes. "Nós estivemos sequestrados pela polícia dois dias; no final não nos deportaram, não nos detiveram, não nos retiveram, estivemos na prisão dois dias, mas nunca leram a acusação, nem pegaram nossos nomes, nada", narrou Flaviano à Agência Efe.
Levando em conta que a viagem é feita tanto por pessoas com condição atlética como mulheres grávidas, é difícil pensar em uma fórmula que garanta o sucesso no caminho: "É uma combinação de condição física, resistência psicológica e sorte. É preciso muita sorte", opinou Flaviano.
Quanto ao tema dinheiro, ele destaca o paradoxo de que "se você tem dinheiro, sua viagem é mais fácil, mas se você tem muito dinheiro, é um dos que menos precisa da viagem".
No entanto, no caminho, os migrantes também encontram anjos como as chamadas "Las Patronas", um grupo de mulheres da comunidade de Guadalupe - no município de Amatlán de los Reyes - que desde 1995 se dedicam a dar alimento aos que viajam em "La Bestia". Posteriormente, começaram a acolher aqueles que queriam fazer uma parada no caminho.
Dentro de seu albergue de paredes rosas e arroxeadas, respira-se um ambiente acolhedor e alegre que contrasta com as trágicas histórias de alguns dos migrantes.
María Guadalupe González afirmou à Efe uma das histórias que mais lhe marcou: um homem chamado Cristóbal viajava no trem com alguns amigos e, em sua passagem por Las Patronas, desceu, pegou comida e começou a jogar bolsas com os alimentos em direção aos companheiros.
Absorto nesta tarefa, fazia ouvidos surdos às mulheres locais, que lhe gritavam para que voltasse a subir porque o trem estava acelerando. Cristóbal tentou subir algumas vezes, sem sucesso, e na terceira tentativa "La Bestia" amputou seu pé.
Las Patronas contam com voluntários que as ajudam a abordar o trem quando "La Bestia" surge ao longe.
Alguns carregam garrafas com água, presas de três em três para que os migrantes possam agarrá-las facilmente. Outros, caixas com porções de feijão, arroz ou latas de atum. Ajudados por carretilhas, percorrem os poucos metros que separam o albergue das vias.
Às vezes, algum maquinista benevolente reduz a velocidade do trem para facilitar a entrega de comida e, em apenas três minutos, "La Bestia" se afasta rumo ao norte.
Amatlán de los Reyes (México), 19 jun (Minds/EFE).- "Deixe que ela te alcance, não tente alcançá-la". Quando "La Bestia" surge entre a vegetação, com seu estrondoso apito, o aumento da adrenalina não pode atrapalhar o procedimento, em que os segundos são preciosos. Um erro pode ser mortal.
Antes do trem chegar, é preciso começar a correr. Cerca de 20 metros, tomando velocidade, olhando rapidamente para trás para saber qual será o vagão no qual subir. E assim que ela passa, é hora de se agarrar firmemente aos degraus.
Fredy Naún Hernández, um hondurenho que conhece bem o modo de subir em "La Bestia", a rede de trens de carga que milhares de migrantes utilizam como modo de transporte para atravessar o México rumo aos Estados Unidos, viaja tranquilo.
Em sua mochila há espaço para um casaco, um cobertor - "nas madrugadas faz bastante frio" - e alguns poucos objetos de higiene pessoal. Não leva nenhuma lembrança da sua família. "Tudo no coração", disse, com um sorriso.
É a terceira vez que Fredy tenta completar a viagem de sua Honduras natal até os EUA. Na última vez foi detido no Texas, após cruzar as águas do Rio Bravo (chamado de Rio Grande pelos americanos).
Agora, acompanhado de seu primo Miguel Ángel, diz que subir em "La Bestia" é "um jogo de acaso, como uma roleta russa".
No pequeno albergue de Las Patronas, no estado de Veracruz, onde um mural da geografia mexicana exibe as artérias de "La Bestia" lembrando que "os sonhos também viajam", Fredy contou à Efe quais serão suas próximas paradas: Cidade do México, San Luis Potosi, Saltillo e Nuevo Laredo, de onde cruzará a fronteira para chegar a Laredo, no Texas.
Boa parte dos migrantes que a cada ano percorre o México - a Anistia Internacional calcula que são 400.000 ao ano - sobe ao trem cargueiro em Tenosique (Tabasco) ou Tapachula (Chiapas).
Os pontos aos quais estas pessoas chegam, em sua maioria procedentes de Guatemala, Honduras e El Salvador, assim que chegam à fronteira são diversos, dependendo se optaram pela rota do Pacífico (oeste), a central ou a do Golfo (leste).
Em Tijuana fica um dos atuais muros que separam o México dos EUA, em Nogales é preciso encarar duras jornadas no deserto, e no leste o desafio é cruzar o Rio Bravo.
Os caminhos percorridos pelos migrantes podem chegar a somar 3.000 quilômetros; a rota do Golfo, que termina no estado de Tamaulipas, é a mais rápida e a mais perigosa, devido à presença do crime organizado.
A opção de "La Bestia" não é a única para atravessar o México. Ainda que Fredy sempre faça a rota em trem, reconhece que o ônibus é um transporte muito mais seguro. "Quem vai te assaltar no ônibus?", se perguntou.
"Mas sempre que você vai comprar uma passagem de ônibus, deve apresentar a identificação, e podem te prender", argumenou.
Pendurados durante dias no teto do trem ou nos espaços entre vagões, os migrantes de "La Bestia" apenas descansam. "Dormimos na margem da via, estendemos uma barraca ali, nos deitamos, e isso é tudo", contou Fredy.
Se há algo que ameace o sonho, além do risco das quedas - que matam ou mutilam muitos migrantes - é a incerteza sobre quem pode subir no trem ou se haverá um controle migratório surpresa.
Fredy disse que em algumas ocasiões há operações de agentes do Instituto Nacional de Migração no meio da noite. Na última, uma jovem caiu de "La Bestia" e morreu.
"Não somos animais para que queiram nos apanhar como um cervo", lamentou.
As autoridades mexicanas reforçaram a vigilância com o Plano Fronteira Sul, apresentado em 2014. Nesse mesmo ano, o secretário de governo, Miguel Ángel Osorio, disse que seriam tomadas ações para que os migrantes não viajassem no trem, pelos riscos no trajeto, em que descarrilamentos são frequentes. Apesar disso, eles não deixaram de subir em "La Bestia".
Camuflado sob o nome falso de Aimar Blanco, o escritor e ativista Flaviano Bianchini decidiu anos atrás ignorar seu passaporte italiano e viajar em "La Bestia" se fazendo passar por um migrante.
Durante o seu trajeto de 21 dias, que relatou no livro "El camino de La Bestia" (2016), o autor repetia como uma mantra dois lemas. O primeiro: "não caia no sono". O segundo: "não confie em ninguém".
Os frequentes assaltos cometidos por grupos armados fazem com que seja fácil que um migrante perca suas economias muito antes de chegar ao destino. Para pagar os serviços dos "coiotes", alguns se veem forçados a fazer trabalhos para membros do crime organizado.
As forças de segurança corruptas também se aproveitam da vulnerabilidade dos migrantes. "Nós estivemos sequestrados pela polícia dois dias; no final não nos deportaram, não nos detiveram, não nos retiveram, estivemos na prisão dois dias, mas nunca leram a acusação, nem pegaram nossos nomes, nada", narrou Flaviano à Agência Efe.
Levando em conta que a viagem é feita tanto por pessoas com condição atlética como mulheres grávidas, é difícil pensar em uma fórmula que garanta o sucesso no caminho: "É uma combinação de condição física, resistência psicológica e sorte. É preciso muita sorte", opinou Flaviano.
Quanto ao tema dinheiro, ele destaca o paradoxo de que "se você tem dinheiro, sua viagem é mais fácil, mas se você tem muito dinheiro, é um dos que menos precisa da viagem".
No entanto, no caminho, os migrantes também encontram anjos como as chamadas "Las Patronas", um grupo de mulheres da comunidade de Guadalupe - no município de Amatlán de los Reyes - que desde 1995 se dedicam a dar alimento aos que viajam em "La Bestia". Posteriormente, começaram a acolher aqueles que queriam fazer uma parada no caminho.
Dentro de seu albergue de paredes rosas e arroxeadas, respira-se um ambiente acolhedor e alegre que contrasta com as trágicas histórias de alguns dos migrantes.
María Guadalupe González afirmou à Efe uma das histórias que mais lhe marcou: um homem chamado Cristóbal viajava no trem com alguns amigos e, em sua passagem por Las Patronas, desceu, pegou comida e começou a jogar bolsas com os alimentos em direção aos companheiros.
Absorto nesta tarefa, fazia ouvidos surdos às mulheres locais, que lhe gritavam para que voltasse a subir porque o trem estava acelerando. Cristóbal tentou subir algumas vezes, sem sucesso, e na terceira tentativa "La Bestia" amputou seu pé.
Las Patronas contam com voluntários que as ajudam a abordar o trem quando "La Bestia" surge ao longe.
Alguns carregam garrafas com água, presas de três em três para que os migrantes possam agarrá-las facilmente. Outros, caixas com porções de feijão, arroz ou latas de atum. Ajudados por carretilhas, percorrem os poucos metros que separam o albergue das vias.
Às vezes, algum maquinista benevolente reduz a velocidade do trem para facilitar a entrega de comida e, em apenas três minutos, "La Bestia" se afasta rumo ao norte.
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