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Contrabando transformou pão em artigo de luxo na Líbia

Pessoas compram pão em uma padaria de Benghazi, na Líbia - Esam Omran Al-Fetori/Reuters
Pessoas compram pão em uma padaria de Benghazi, na Líbia Imagem: Esam Omran Al-Fetori/Reuters

Mohamad Abdel Kader

Trípoli

19/07/2018 10h03

"Jamais pensei que não poderia comprar pão. Foi para isso que demos o nosso sangue, para isso que fizemos uma revolução?", se pergunta com um longo lamento Khadija, uma mãe de família líbia com seus 30 e tantos anos.

Quando o sol se põe sobre o centro da capital Trípoli, ela é uma das poucas mulheres que espera em frente à padaria de grande movimento. Há apenas duas semanas, era possível comprar dez unidades de pão branco em uma sacola de plástico por um dinar. Agora, nem três pãezinhos.

"Os preços não param de subir. A carne é impossível, não podemos pagar. Faço sanduíches para os meus filhos com latas de atum. Logo não temos nada mais para comer no dia todo", disse à Agência Efe.

Trata-se de uma inflação galopante que analistas locais e internacionais relacionam ao contrabando, especialmente de combustível, que se transformou nos últimos três anos no verdadeiro sistema econômico do país.

Segundo instituições independentes internacionais como o Crisis  Group, o comércio ilegal de gasolina e outros produtos refinados movimenta mais de US$ 2 bilhões ao ano apenas na Líbia, e tem ramificações em todo o norte da África e no Sahel.

O método é um simples e produtivo círculo vicioso: o petróleo é processado em refinarias líbias, como a do porto de Mellitah, no oeste de Trípoli, e transportado em caminhões que o distribuem por todo o território nacional.

No entanto, a maior parte das cisternas caem nas mãos dos contrabandistas que as desviam para as fronteiras com Tunísia, Argélia e Níger, onde a gasolina líbia subsidiada é vendida mais barata que a também subsidiada local.

A escassez e a necessidade de combustível na Líbia fazem com que esses mesmos caminhões retornem ao país com gasolina de contrabando procedente de refinarias na Argélia, no Marrocos e inclusive na Nigéria, o que encarece os preços.

O maior custo do transporte repercute no preço de produtos básicos, como a farinha, cujo comércio também está em poder de grupos dedicados ao mercado negro devido à ausência de uma autoridade firme, especialmente no oeste do país.

Economistas locais e estrangeiros afirmam que o contrabando, não só o de combustível, mas também os de pessoas e armas - o primeiro gera em torno de 1,5 bilhões de euros, o segundo poucos se aventuram a calcular - é hoje a base de um sistema em ruínas.

No entanto, o contrabando é quase o único espaço - junto aos alistamentos nas milícias - a oferecer às famílias e aos jovens líbios um trabalho e uma fonte de renda.

A Líbia, com seis milhões de habitantes, é um país rico em energia fóssil, mas também em outros recursos que não explora, como a abundante pesca e o turismo de cidades históricas e grandes espaços naturais.

Antes da revolução, que em 2011 acabou com os 42 anos de tirania de Muammar Kadafi, o país produzia mais de 1,8 milhão de barris de petróleo por dia e proporcionava oportunidades de trabalho a milhares de migrantes procedentes de territórios vizinhos.

Sete anos depois, se tornou vítima do caos e da guerra civil, no qual três focos de poder sem legitimidade democrática disputam a autoridade apoiada por milícias que frequentemente mudam de lado.

A atual produção diária de petróleo depende das atividades das milícias, que às vezes ocupam ou fecham campos e oleodutos para pressionar as autoridades. O teto atual é de 800 mil barris diários.

O sistema bancário do país desapareceu, e inclusive a moeda é diferente - tanto em valor como fisicamente - dependendo da parte do território em que circula.

Além disso, e segundo cálculos da Organização Internacional da Migração (OIM), vinculada à ONU, há no país cerca de 750 mil migrantes com a intenção de ir à Europa através das rotas controladas pelas máfias.

A isso se soma a desvalorização e a instabilidade da moeda nacional: no câmbio oficial, um dinar equivale a um euro, mas no mercado negro um euro custa sete dinares.

"Os salários não compensam. Os bancos quase nunca têm dinheiro e inclusive, às vezes, o governo não pode pagar tudo. A população está cansada e triste, é normal que sinta saudades dos tempos de Kadafi. Naquela época, pelo menos sabíamos que as padarias e os mercados estavam cheios", se queixou Reda  Abdallah, funcionário de um ministério controlado pelo governo sustentado pela ONU em Trípoli.