Legista italiana tenta dar rostos a imigrantes mortos no Mediterrâneo
Cristina Cabrejas.
Roma, 22 jan (EFE).- Tinha 14 anos, nasceu no Mali e costurou no bolso as excelentes notas da escola para que soubessem que era bom aluno quando chegasse à Europa. Isso foi o que a médica-legista Cristina Cattaneo, que tenta identificar os imigrantes mortos no mar Mediterrâneo, conseguiu descobrir quando recebeu o corpo de um adolescente que se afogou na tentativa de conseguir uma nova vida.
"Imaginemos, só por um momento, que um avião cheio de italianos cai no litoral de algum país e que os corpos são recuperados, enterrados, mas que ninguém se importa em identificá-los. Não aceitaríamos isso. Por que então aceitar quando os que morrem são esses 'estrangeiros'?", esta é a reflexão de Cristina no seu livro "Naufraghi senza volto" (Náufragos sem um rosto, em tradução literal).
Publicado há algumas semanas na Itália, ele reúne o trabalho e as experiências vividas por ela nessa missão de dar rostos aos milhares de mortos no Mediterrâneo e informações aos familiares.
A ideia é contar algumas histórias que nos últimos dias voltaram a comover parte da opinião pública italiana graças à charge do desenhista Makkox na qual uma criança mostra suas notas para os animais marinho no fundo do oceano.
Essa era uma das vítimas do naufrágio de um barco perto da costa da Líbia em 18 de abril de 2015, considerado o maior dos últimos tempos, com cerca de mil mortos.
As vítimas foram identificadas durantes mais de três meses nos quais Cristina e sua equipe ficaram na Sicília analisando os corpos recuperados e levados à base da Marinha em Melilli (Siracusa).
"Percebemos depois que era muito mais jovem do que o resto das vítimas", explicou Cristina, que após o primeiro exame dos dentes concluiu que a vítima tinha 14 anos.
Ao retirar daquele jovem uma espécie de casaco impermeável, ela encontrou por dentro do bolso alguns papéis dobrados, com cuidado para não rasgar, que diziam em francês: "Bulletin scolaire" (boletim escolar) e abaixo as palavras "mathematiques, physiques..." (matemática, física).
"Este adolescente do Mali guardou com cuidado um documento valioso para o seu futuro, mostrando seus esforços e suas capacidades e que, pensou, serviria para abrir portas em qualquer colégio da Itália ou da Europa, mas agora são só algumas poucas páginas desbotadas e molhadas", contou.
Para ela, o que mais chamou a atenção nesse trabalho foram os saquinhos que as pessoas cujos corpos foram recuperados levam cosidos nas roupas com um punhado da terra dos seus países de origem. Outras também carregavam livros, fotos de parentes, escovas de dente, fones de ouvido e celular, objetos que qualquer adolescente levaria em uma viagem.
O trabalho de reconhecimento realizado por Cristina, professora universitária e diretora do Laboratório de Antropologia e Odontologia Legista em Milão, começou em 2013, depois do naufrágio de um barco no qual morreram 368 migrantes em 3 de outubro perto de Lampedusa.
Desde então, graças a doações privadas, ela se dedica a tentar restituir uma identidade a estas pessoas.
"É importante não só para dar dignidade a um corpo, mas também para quem fica pra trás. Não há nada pior que do que a chamada 'perda ambígua', ou seja, não saber se o seu filho está vivo ou morto, se o seu pai está no fundo do mar ou chegou ao destino. É um direito sacrossanto, mas ninguém se mexe por isso", explicou no vídeo de apresentação de seu livro.
Em entrevista ao jornal "Il Manifesto", ela afirmou que os mortos de Lampedusa em 2013 foram 366, que quase todos foram identificados, e que 70 famílias souberam do trágico final de seus entes queridos.
Por outro lado, do "Barcone", cujo naufrágio matou cerca de mil pessoas, foram recuperados 528 corpos, e examinadas cerca 25 mil ossadas. Nenhum deles foi restituído aos parentes até o momento. EFE
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