Militar brasileira receberá prêmio da ONU por defesa da igualdade de gênero
Lucas de Vitta.
Rio de Janeiro, 28 mar (EFE).- A capitão de corveta da Marinha brasileira Marcia Andrade Braga receberá nesta sexta-feira, em Nova York, o prêmio de Defensora Militar da Igualdade de Gênero da ONU pelo trabalho desenvolvido na Missão de Paz das Nações Unidas na República Centro-Africana.
Criado em 2016, o prêmio reconhece o esforço dos integrantes das missões da ONU na promoção dos princípios da Resolução 1325 do Conselho de Segurança sobre mulheres, paz e segurança. A homenagem será entregue pelo secretário-geral, António Guterres, durante a Conferência Ministerial de Forças de Paz.
"Não acreditei quando me contaram. Eu estava na Itália e recebi a notícia no Dia Internacional da Mulher. Perguntei até para a pessoa que me ligou: 'onde está o documento formal? Isso é real? Não teve nenhuma confusão?", contou a militar brasileira em entrevista à Agência Efe.
Na Marinha há 18 anos, Marcia, que antes da carreira militar era professora, partiu para a África em abril de 2018. Na bagagem, levava consigo uma missão nada fácil. Utilizar a perspectiva de gênero para tornar o trabalho de proteção dos civis mais fácil para as tropas da ONU que atuam na República Centro-Africana desde 2014, quando a missão das Nações Unidas para a estabilização do país (Minusca) foi instaurada.
O caminho até o prêmio, porém, começou muito antes. Marcia se voluntariou para uma vaga aberta pela ONU para o Brasil. Na época, ela ainda não sabia que trabalharia com a questão de gênero. Aprovada no processo seletivo feito pelo Ministério da Defesa, a militar, que já tinha experiência na área, fez um curso específico em Uganda antes de ir para a República Centro-Africana.
"Fui a primeira brasileira a assumir essa função de assessora militar de gênero. Quando eu cheguei, não tinha praticamente nada para a missão inteira. Preparei um plano de ação para receber as informações sobre todo o batalhão e a situação no país. Depois fui visitar todas as áreas para conhecê-las melhor", contou Marcia.
Um trabalho específico, desenvolvido quase na fronteira da República Centro-Africana com o Sudão, chamou a atenção da brasileira.
"Comecei a observar que o batalhão da Zâmbia já tinha um grupo de engajamento de mulheres. Fiquei apaixonada pelo trabalho delas. Elas conseguiram fazer as mulheres da comunidade se tornarem mais engajadas. A forma como a comunidade aceitava a missão e a interação entre todos era fantástica. Foi um modelo", destacou.
O exemplo virou um documentário, feito a pedido de Marcia, que passou a exibi-lo para os cerca de 11,7 mil militares da Minusca, já que mostrava na prática o treinamento sobre as questões de gênero que a capitão brasileira vinha desenvolvendo. A partir disso, equipes de engajamento, formadas por homens e mulheres, foram criadas nas várias regiões do país, reunindo informações importantes para auxiliar no trabalho de proteção dos civis.
Outra parte do trabalho era ampliar a presença de mulheres nas patrulhas feitas pelos militares da Minusca em todo país. Para Marcia, esse trabalho é essencial para aproximar a missão de paz da ONU das comunidades locais.
"Isso é notório, realmente faz a diferença. Tira um pouco do caráter ofensivo da presença das tropas, torna a missão mais humana, mais próxima da comunidade. Se você ouve a comunidade, tem mais informações e é mais efetivo na proteção dos civis", afirmou.
"No caso da República Centro-Africana, muitas mulheres não têm voz. Além de ter a parte de favorecer a interação, de elas se sentirem mais propensas a falar de um caso de violência sexual com uma mulher, tem a questão da própria igualdade de gênero, que a mulher pode desempenhar o mesmo papel que um homem. Servimos de exemplo", acrescentou a militar brasileira.
Um dos principais objetivos do trabalho é reduzir o número de estupros cometidos pelos vários grupos armados que atuam no país, muitos deles infiltrados nas comunidades. Com os dados coletados pelas patrulhas, Marcia conseguiu identificar melhor áreas vulneráveis e, junto com as diversas equipes que trabalham no país, propôs soluções para diminuir deslocamentos das mulheres, como a instalação de bombas de água e de sistemas de energia solar perto de vilarejos, além da criação de hortas comunitárias.
"As mulheres são as que ficam mais na rua, procurando água, alimentos, lenha. E os estupros ocorrem com mulheres de todas as idades. Mulheres de mais de 60 anos passam por isso, crianças. A questão é muito séria. Em uma área, em dois meses, tive o número absurdo de 80 casos de violência sexual reportados. E isso significa que há muitos mais não registrados", explicou.
Para a brasileira, o premio dará ainda mais visibilidade à importância da presença feminina em missões de paz como a Minusca e ajudará a reduzir a resistência de alguns comandantes com a questão da igualdade de gênero. Atualmente, dos 11,7 mil militares que compõem as forças da ONU na República Centro-Africana, apenas 3,5% são mulheres. Em todas as operações similares chanceladas pela ONU, o percentual chega a 4%, mas a meta proposta na Estratégia para a Paridade de Gênero de Pessoal Uniformizado é chegar a 15% até 2028.
"Tive batalhões que visitei que percebi que o comandante não queria que as mulheres fossem nas comunidades. Elas exerciam funções tipicamente femininas, como trabalhar na secretaria ou na cozinha. Alguns acham que a mulher é mais frágil, não vai aguentar, vai se ferir em combate. Vejo que, com o tempo, isso está acabando. Com a presença da mulher, eles começam a ver que elas têm um comprometimento elevado e notam os resultados", revelou.
Depois de receber a premiação na sexta-feira, Marcia participará de uma reunião com outras dez mulheres integrantes de missões de paz da ONU em todo o mundo. O encontro terá a presença da atriz Angelina Jolie, embaixadora da Boa Vontade das Nações Unidas, e de ministros de Defesa de vários países do mundo.
"Vou aproveitar para defender a presença da mulher em nível tático, fazendo esse trabalho com as comunidades locais. É uma oportunidade para eu dar o recado de que as mulheres locais precisam ser ouvidas, principalmente nas regiões de conflito e especialmente na África", disse Marcia.
"Percebi na prática algo que eu já sabia na teoria: as mulheres são muito comprometidas com a paz", concluiu. EFE
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