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Sem divórcio legal, Filipinas perpetuam casamentos fracassados

23/08/2019 10h04

Sara Gómez Armas.

Manila, 23 ago (EFE).- Milhares de casamentos que chegaram ao fim aguardam há anos a aprovação de uma lei de divórcio nas Filipinas - o único país do mundo onde a prática não é reconhecida legalmente -, o que condena os casais a permanecerem unidos, infelizes e frustrados, até que a morte os separe.

A situação é especialmente difícil para casais que vivem relações tóxicas e vítimas de maus-tratos dentro do casamento, problema que afeta uma a cada quatro mulheres nas Filipinas, segundo estatísticas oficiais de 2018.

Uma delas é Melody Alan, de 46 anos, que suportou durante 14 anos as constantes agressões e humilhações de um marido alcoólatra e drogado, que nunca forneceu dinheiro à família, formada por quatro filhos.

"Uma noite ele ficou especialmente violento e me empurrou pelas escadas depois de me bater", lembrou Melody, que salvou a própria vida graças à intervenção dos dois filhos mais velhos, que a incentivaram a se separar de uma vez por todas.

Agora, após 12 anos separada, Melody é secretária-geral do grupo Advogados de Divórcio das Filipinas (DAP, na sigla em inglês), com mais de 10 mil membros, "a maioria mulheres que sofreu abusos dos maridos", que fazem campanha para a legalização do divórcio.

Sem divórcio, mulheres como Melody só podem recorrer atualmente à separação legal, o que permite terminar a convivência e repartir bens em comum, mas, aos olhos da lei filipina, o homem continua sendo o marido. A vítima mantém o sobrenome do cônjuge e necessita a assinatura dele para alguns procedimentos, como comprar uma casa.

A outra opção é a anulação, um processo embaraçoso e caro, só ao alcance de famílias ricas: a despesa mínima beira os 300 mil pesos (R$ 22 mil) - que equivale ao salário anual de trabalhadores de classe média -, mas pode chegar a um milhão (R$ 77 mil), e a decisão final depende de um juiz.

Diante dessa situação insólita que só se repete no Vaticano, a senadora da oposição Risa Hontiveros empreendeu uma nova cruzada no Congresso para tentar legalizar o divórcio na Filipinas, depois que vários projetos de lei apresentados desde 2005 pararam na resistência de congressistas católicos e conservadores, que acentuam o divórcio como política "antifilipina".

"O divórcio é uma saída para as pessoas presas em uniões sem amor ou abusivas, às vezes inclusive violentas. Trata-se de uma segunda oportunidade para o amor e o casamento", explicou à Agência Efe Hontiveros, que apresentou no mês passado no Senado o enésimo projeto de lei de divórcio.

A versão impulsionada por Hontiveros inclui a violência, mesmo se só tiver ocorrido uma vez, como base para o divórcio, além das diferenças irreconciliáveis, opções que não são aplicadas atualmente para obter a separação legal ou a anulação do casamento.

A lei do divórcio é uma medida amplamente esperada por grupos feministas na Filipinas, que paradoxalmente está entre os países mais igualitários da Ásia, com salários equiparáveis, governos paritários e leis avançadas contra o assédio e a discriminação por gênero ou orientação sexual.

"A proibição do divórcio é uma mancha nesse histórico", afirmou Hontiveros, que acredita que a proposta vá adiante desta vez, já que "cada vez mais parlamentares estão abertos ao divórcio", medida que conta com o apoio de 53% dos filipinos.

A senadora Pia Cayetano também apresentou um projeto de lei de divórcio, enquanto a Câmara dos Representantes já discute outro texto a respeito.

O principal empecilho para a legalização do divórcio é "a arrasadora afiliação católica da maioria dos filipinos, mais de 80%, e a arrasadora influência da Igreja Católica no país", descreveu Hontiveros.

A Conferência de Bispos Católicos expressou reiteradamente sua oposição ao divórcio, visto como uma ameaça à santidade "do casamento e da família", e contrário à tradição cristã.

Nas Filipinas, o país com mais católicos da Ásia e o terceiro do mundo, o divórcio é permitido entre as minorias muçulmanas e indígenas, "uma clara discriminação entre filipinos", lamentou Mavic Millora, da mesma plataforma de Melody.

"Após 15 anos de casamento, decidi me separar porque a situação era insustentável para toda a família, especialmente para os meus filhos. Eu me esforcei para ser a esposa tradicional que a sociedade espera, mas era infeliz", contou.

Agora, ela se dedica a fazer campanha pelo divórcio, algo que começou com um grupo do Facebook onde gente como ela se refugiava no anonimato da internet para compartilhar as tristezas de seus casamentos.

Lá, encontrou consolo Maria Bravo, de 50 anos, que está há 30 anos casada com "um marido que nunca trabalhou e nem se preocupou com o sustento familiar" e que a condenou a uma "relação abusiva" marcada por maus-tratos psicológicos e crises nervosas, por isso se separou há dez anos.

"Posso dizer agora que estou felizmente separada porque me sinto livre", confessou Maria, que durante seu casamento temeu recair em uma espiral de tendências suicidas que sofreu quando era adolescente.

Após crescerem em uma família como essa, suas três filhas universitárias garantem que nunca irão se casar, uma opção cada vez mais comum entre os jovens diante dos impedimentos ao divórcio. A taxa de casamentos desabou 20% na última década. EFE