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Polícia de Hong Kong deixa de ser a mais refinada da Ásia

20/09/2019 10h35

Shirley Lau.

Hong Kong, 20 set (EFE).- Um silêncio se fez há três meses entre Nora e o irmão, que evitam a qualquer custo falar sobre a atual onda de manifestações que se espalhou por Hong Kong, já que ela apoia os manifestantes, enquanto ele é um agente da polícia, cujo prestígio na cidade despencou.

"Não acho que ele seja o tipo de policial que bateria brutalmente nos manifestantes, mas tenho medo que, após ter estado na força policial por alguns anos, algo tenha mudado", disse Nora, que trabalha no setor bancário, à Agência Efe. "Nossa relação provavelmente nunca será a mesma", completou, em tom de resignação.

A distância entre esses dois irmãos simboliza um impasse cada vez mais evidente em Hong Kong. Desde o começo dos protestos contra uma polêmica lei de extradição, em junho, a relação entre a população e a polícia da ex-colônia britânica caiu a um nível nunca antes visto.

Em muitas partes do mundo, é comum que as relações entre o povo e as forças de segurança se deteriorem em tempos de agitação política e social. Mas a velocidade com que essa relação se degradou em Hong Kong em apenas três meses é surpreendente, especialmente quando considerada a convivência harmônica levada por muito tempo na região.

Durante as manifestações dos últimos meses, os agentes foram acusados de brutalidade contra os participantes e inclusive contra pessoas que não estavam nos protestos, mas simplesmente cruzaram com a polícia.

Atualmente, poucas vezes os policiais conseguem realizar uma operação sem que sejam insultados. Além disso, o foco dos protestos nas ruas passou da lei da extradição para a denúncia da brutalidade dos policiais e o pedido para que sejam instauradas comissões para investigá-los.

"As coisas tomaram dimensões extremas. A polícia se tornou feroz na hora e na forma de deter manifestantes e vai longe demais com suas armas. Aparentemente, há uma perda de controle emocional coletivo", declarou Bruce Lui Ping-kuen, um veterano professor de jornalismo da Universidade de Hong Kong e ex-repórter.

"Para ser justo, não podemos culpar só a polícia. Alguns manifestantes também são violentos. Mas a polícia está armada, então os dois não estão nas mesmas condições", acrescentou.

A cada semana aparecem novas acusações de atuações policiais questionáveis, incluindo a conivência com a máfia local, o uso excessivo da força ao prender manifestantes, maus tratos físicos aos detidos e provas falsas plantadas.

Em um polêmico incidente no dia 31 de agosto, uma força paramilitar entrou em uma estação de metrô para deter manifestantes que atacaram passageiros, entre eles uma criança, e manteve a estação fechada durante duas horas, o que retardou o atendimento médico aos feridos.

Poucos dias antes, o escritório de Direitos Humanos da ONU emitiu uma declaração na qual afirmava ter provas críveis de que a polícia de Hong Kong utilizava armas de uma forma proibida pelas normas e padrões internacionais.

Alguns manifestantes passaram então a utilizar novas táticas, como o lançamento de coquetéis molotov e o combate à polícia anti-distúrbios com técnicas do kendo, uma arte marcial japonesa que utiliza o sabre de bambu.

Chan, um ex-agente policial, ativo durante a época colonial britânica e aposentado no início dos anos 1990, acredita que a polícia atual foi longe demais.

"No meu tempo, teríamos hesitado em usar um cassetete para dispersar a multidão. É chocante ver o que fazem hoje com os meninos. Os policiais são brutos e não mais neutros", opinou.

Para o professor Lui, a mudança vivida pelas forças de segurança de Hong Kong, antes conhecidas como "as mais refinadas da Ásia", se deve à crescente influência da China.

"A China dedica uma grande importância aos seus órgãos de cumprimento da lei. Como instrumento para salvaguardar a estabilidade, esses órgãos podem burlar a lei quando realiza operações", argumentou.

Algumas vozes denunciam que oficiais chineses se infiltraram na polícia de Hong Kong, afirmação negada pelas autoridades locais. De qualquer forma, os manifestantes continuam pedindo uma comissão independente que investigue os abusos policiais, uma reivindicação que a chefe de governo de Hong Kong, Carrie Lam, recusou depois de aceitar a retirada do projeto de lei de extradição.

Lam alegou também que o conselho independente sobre queixas policiais é suficiente para atender a demanda dos manifestantes. Algo que Nora, assim como outros milhares de moradores de Hong Kong, nega.

"Precisamos de uma investigação independente. Muitos manifestantes foram acusados de distúrbios, mas os policiais que violaram a lei também devem enfrentar a justiça", reivindicou. EFE