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Esquerda venezuelana se distancia de Maduro para recuperar ideais chavistas

04/12/2020 14h17

Gonzalo Domínguez Loeda, Caracas, 4 dez (EFE).- Sob a chancela de Hugo Chávez, foram muitos os partidos de esquerda que viveram e revolucionaram a política venezuelana. No entanto, a postura de seu sucessor, Nicolás Maduro, acabou quebrando a herança de alianças, e em torno do Partido Comunista é que se nota, atualmente, uma divisão em relação ao atual presidente.

O desafio saiu caro. Dois dos grupos que mais se identificavam com o chavismo - Tendências Unificadas para Alcançar o Movimento de Ação Revolucionária Organizada (Tupamaro) e Pátria para Todos (PPT) - tiveram suas siglas retiradas pelo Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), que as entregou a alguns ex-militantes considerados mais dóceis com o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), fundado por Chávez.

Apesar disso, sem ceder ao desânimo, eles se uniram através da coalizão Alternativa Popular Revolucionária (APR), impulsionada pelo Partido Comunista da Venezuela (PCV) para a disputa da eleições legislativas de 6 de dezembro, com a intenção de retomar a essência da revolução bolivariana e se afastar da "política burguesa de ajuste macroeconômico" que afirmam que foi implementada pelo atual presidente da Venezuela.

HERDEIROS.

"O governo de Maduro vem desenvolvendo uma política contrária ao compromisso e ao acordo do presidente Hugo Rafael Chávez Frías (...) Há uma tendência que é totalmente contrária ao compromisso do presidente Chávez com o nosso povo", declarou à Agência Efe o secretário-geral do PCV, Óscar Figuera.

Segundo o secretário-geral do Tupamaro, Ares di Fazio, a luta anti-imperialista e a abordagem de Chávez, que esteve à frente do país desde fevereiro de 1999 até sua morte, em março de 2013, aos 58 anos, é fundamental para o povo venezuelano em seu dia a dia e para que se mantenha viva a esperança.

"Somos não só herdeiros, mas também defensores (do legado de Chávez), assim como a maioria do povo venezuelano", acrescentou Di Fazio.

Rafael Uzcátegui, militante veterano e secretário-geral do PPT, por sua vez, destacou que não classifica o partido governista como socialista, mas que existe um "PSUVismo rico", "eticamente rendido ao neoliberalismo, que luta socialmente para permanecer no poder às custas de salários, benefícios sociais, saúde (...) Às custas do bem-estar do povo venezuelano".

"Ratificamos nosso caminho revolucionário, ratificamos nossas mudanças e ratificamos porque existe um PSUV que se rendeu, um PSUV que hoje indica que será a burguesia revolucionária o novo agente de mudança", opinou.

A LUTA.

A Venezuela vive há muito tempo um processo de dolarização da economia, com base no mercado paralelo, mas há pouco mais de um ano o preço oficial, do Banco Central da Venezuela (BCV), mostra uma desvalorização constante do bolívar soberano, o que impulsiona o uso da moeda americana.

O combate a essa dolarização e às políticas do BCV estão no epicentro das críticas feitas pelos partidos que integram a APR.

Figuera, do PCV, denuncia que o governo "vem instituindo" uma dolarização que "ataca a soberania monetária da Venezuela".

"Na mesma medida que o bolívar se desvaloriza, o poder de compra do nosso povo, da nossa classe trabalhadora, é impactado e, no fim das contas, ficamos sem condições de adquirir os bens essenciais para a nossa existência", ressaltou.

No entanto, para ele, as medidas adotadas por Maduro são ainda mais contundentes: "A política econômica e monetária do governo venezuelano, que hoje se expressa através do BCV, serve os interesses do capital e ataca os direitos do nosso povo, isso é o essencial, é o que está acontecendo".

Já Di Fazio lembrou que "a economia está dolarizada em todos os aspectos, desde o mais modesto vendedor ambulante até os supermercados", enquanto "o salário fica em bolívares", o que gera uma situação insustentável.

"É um golpe criminoso contra o poder aquisitivo de nossos trabalhadores que um porta-voz do partido do governo saia dizendo que são danos colaterais. É um dano colateral que atinge mais de 80% da população, o percentual de que tem acesso à moeda estrangeira é muito baixo", enfatizou.

HERANÇA.

Para Di Fazio, o poder aquisitivo que os trabalhadores tinham há 15 anos, quando podiam ter acesso a bens de consumo e também economizar parte de seus salários, desapareceu "por uma questão estrutural".

"Estamos lutando contra esse modelo estrutural. As vantagens que estão sendo dadas ao capital transnacional e ao capital nacional, estamos do lado daqueles que sofrem com essa investida socioeconômica", argumentou.

"Não é justo que nós, tendo capacidade para produzir todos os alimentos de que necessitamos, estejamos devolvendo a esses latifundiários tradicionais as terras que o próprio comandante Chávez cedeu aos camponeses", acrescentou o dirigente do Tupamaro.

Por sua vez, Figuera disse que o governo Maduro "se manifestou publicamente" sobre a necessidade de "construir uma burguesia revolucionária que não existe nos tempos atuais".

A proposta foi feita pelo ministro da Agricultura, Wilmer Castro Soteldo, que garantiu que a Venezuela deve "construir uma burguesia revolucionária e transformadora", o que despertou a ira da esquerda venezuelana.

Por isso, o dirigente do PCV considera que em seu país "há dois lados da corrente capitalista": o governo e a oposição, que seriam "dois lados da mesma moeda" por expressarem "um único interesse principal".

Uma terceira proposta seria a coalizão encabeçada por ele, que "propõe uma solução revolucionária à crise do capitalismo dependente venezuelano".

RESPOSTA À FORMAÇÃO DA COALIZÃO.

Maduro não demorou muito para responder, ressaltando que não se deixaria levar "pela infantilidade da esquerda faladora de bobagens", sem citar explicitamente a quem se referia.

Em seguida, vieram as decisões judiciais contra o Tupamaro e o PPT, medida que Uzcátegui descreve como "justiça medieval".

"Houve uma decisão insólita. Foi como um julgamento medieval, onde há uma opinião e decidem nos sancionar sem dizer o porquê. É a judicialização do pensamento e das ideias políticas", argumentou.

Para fazer frente ao presidente, Uzcátegui se apega à ironia e diz que "ele é o mais maduro da esquerda", enquanto os outros "são os infantis".

"Nós somos a infantilidade de Chávez, a infantilidade que se atreveu a se erguer para exigir o poder. Somos a infantilidade daquela esquerda que lutou por bandeiras democráticas, pelos direitos dos trabalhadores", defendeu o dirigente do PPT, que considera que o PSUV representa "a esquerda que se tornou milionária" e "renunciou a ser esquerda".