Cris Monteiro nos dá um presente para discutir o que ninguém quer
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Racismo divide opiniões, óbvio. Mas nunca é só sobre um xingamento desumanizando uma pessoa negra ou sobre impedir alguém de trabalhar ou estar em um lugar por conta de sua cor ou raça. Nunca foi ou é só por conta do que se vê em noticiários.
Evidenciar casos espantosos sempre foi uma estratégia para chamar a atenção à questão racial no Brasil porque, sem o poder de chocar a população, sem o constrangimento público diante de casos gritantes, nós não estaríamos nem discutindo racismo agora e aqui. Estaríamos ainda alimentando a noção da democracia racial - e que ainda está presente na nossa construção cultural.
Mas para avançar na discussão é preciso ter coragem e bom senso para também discutir o racismo que quase ninguém vê - ou que, na verdade, não se quer ver. Ao retrucar manifestantes em uma Casa legislativa dizendo que "uma mulher branca, bonita e rica incomoda muito", a vereadora de São Paulo Cris Monteiro nos deu um presente ao possibilitar discutir sobre o racismo que é sutil e camuflado.
Como diz Muniz Sodré, racismo é "intersubjetivo". "Por isso ele é muito difícil de combater. Você não o pega." Talvez por isso ele nos provoca a repensar sobre nós mesmos o tempo todo. Está tão enraizado em nós que naturalizamos situações, ideias e comportamentos.
Racismo é uma ideologia. Isso nos isenta? Não necessariamente. Afinal, mesmo não o compreendendo, a maioria de nós sabe que racismo existe e que ele é um problema. Quem não se lembra das pesquisas onde a maioria dos brasileiros considera o país racista, mas não se considera racista?
É como Grada Kilomba nos provoca, "a conscientização é um processo, não é uma exigência. É um caminho de muitas perguntas, e não um caminho moral, mas de responsabilidade política. É o reconhecimento de algo: o que é que eu faço com o que sei, agora que sei?"
Além disso, enquanto fenômeno, o racismo também muda, se adapta. Citando o filósofo Kabengele Munanga, "ele tem um percurso e várias histórias, que devem ser interpretadas de acordo com épocas, modelos culturais e estruturas de poder das sociedades que o praticam".
Mas tem coisas nele que são imutáveis: a essência da relação de poder. A ideia de que uma raça é superior a outra estabelecendo privilégios a grupos sociais. No caso brasileiro: uma ideologia branca em detrimento aos demais.
Voltemos então a Cris Monteiro. Ao racializar a questão, se colocando na condição de uma mulher branca, a vereadora expôs a sua ideia de poder. Eu, uma mulher branca, incomodo porque sou branca. Me parece óbvio dizer que não há problema algum em ela afirmar sua identidade racial.
O fio da meada está no uso e intencionalidade de seu uso. Na sequência, ela se diz "rica", adicionando sua classe econômica à questão, o que reforça o seu status social. Aí adicionamos à discussão o local onde a frase foi dita: uma Casa legislativa. Há aí uma intencionalidade de afirmar seu status de poder diante dos manifestantes.
E é por isso que é sutil. Porque não é só sobre dizer. É também sobre o uso e intenção ao dizer. Evidenciar seu status racial, social e econômico para determinar e assegurar sua posição de poder é uma atitude racista em si.
Eu sou daquelas que acredita que o que sai de nossas bocas reflete nossas ações. Mas também sou do time que não julga o livro pela capa. Racismo também é sobre viver o dia a dia, que nada mais é do que sobreviver a contradições.
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