TikTok e fé: religiosos criticam banalização de rituais de matriz africana

Abrir o TikTok e dar de cara com uma live apresentada por um espírito em uma pessoa incorporada parece estranho? A cena causa incômodo, até mesmo para quem é adepto das religiões de matrizes africanas.

Religiosos e especialistas ouvidos por Nós Negros entendem que é comum a religião se adaptar à modernidade, mas alertam para o seu uso incorreto, como a exposição excessiva, uma espécie de "tiktokização" da religiosidade.

Muito do que era considerado segredo tem sido exposto sem moderação, como os rituais de corte que envolvem animais, ritos de iniciação, entre outras ritualísticas que, por tradição, sempre foram restritas às comunidades de terreiro justamente para evitar interpretações equivocadas ou ataques que possam profaná-las.

A privacidade na religião também tem relação com o período escravocrata em que africanos e seus descendentes tiveram que se proteger da repressão e perseguição do Estado.

Para David Dias, pai de santo da umbanda, mestre em ciência da religião e autor do livro "Sincretismo na Umbanda", não há nenhuma problema publicar algo sobre a religião, mas a superexposição provoca não só uma simplificação dos conceitos das religiões de matriz africana, como também as colocam em um lugar de superficialidade.

"Há uma tendência de descontextualizar elementos que, lá dentro do terreiro, são sagrados. Pessoas que não fazem parte vão ler de forma distorcida, sem o devido entendimento. Então tudo parece muito simples de ser feito e observado, e mais ainda de ser reproduzido", afirma.

Rodney William, pai de santo do candomblé, doutor em ciências sociais e autor do livro "Apropriação Cultural", faz um contraponto. Para ele, é importante entender que a internet faz parte do cotidiano dessas religiões e seus adeptos. A questão, neste caso, diz respeito muito mais ao que é exposto na rede do que ao ato de expor em si.

"As redes sociais, de uma maneira geral, são um canal para que a gente mostre o que de fato essas religiões são, mas isso tem que ser feito com responsabilidade, mostrando a beleza do nosso culto e sua função social que é tão importante", explica.

A candomblecista Patrícia Carvalho, de 29 anos, costuma usar o TikTok e acredita que o espaço das redes sociais poderia ser usado para popularizar as religiões, compartilhando seu valor histórico e social, não expondo as práticas que são sagradas.

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"A incorporação, os ritos que são sagrados, são expostos de um jeito que vai além da ideia de tirar um pouco do estigma, então as pessoas acabam ultrapassando esse limite e até mesmo banalizando coisas que são sagradas"
Patrícia Carvalho, candomblecista

Caique Franco, de 24 anos, já foi umbandista e hoje está no candomblé. Ele afirma que pode ser até perigoso a forma como algumas práticas são expostas, citando como conteúdo problemático um vídeo em que uma pessoa ensina a fazer um ebó, ritual de limpeza energética praticado em algumas religiões de matriz africana.

"Você só aprende a fazer isso depois de um tempo de iniciação [na religião]. Eu mesmo não sei porque sou abiã [pessoa não iniciada] e ainda não estou no meu tempo de aprender. Algumas pessoas não estão respeitando isso. Existe uma complexidade por trás desse sistema religioso e, às vezes, o pessoal não respeita e vira uma abordagem sensacionalista, do tipo: 'faça isso e você vai ficar rico'. Mas não é assim que funciona, isso só reforça o preconceito"
Caique Franco, candomblecista

Pierre Verger, raça e a exposição do sagrado

Para além do que se pode apontar sobre como o processo de colonização apagou parte da identidade cultural e espiritual da população afro-brasileira, existe também um privilégio direcionado a quem pode se expor enquanto adepto das religiões de matriz africana, segundo observa o sacerdote Rodney William.

No TikTok, o traço em comum entre os vídeos que costumam acumular milhões de visualizações é que a maioria é figurado por pessoas brancas - talvez um reflexo do embranquecimento dessas religiões, já apontado em 2022 pelo Datafolha.

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Rodney William destaca que a prática da exposição dessas religiões ganhou evidência no século 20 com a extensa obra do francês Pierre Verger, fotógrafo e antropólogo que dedicou a carreira a estudar e representar principalmente o candomblé.

Na sua obra mais conhecida, "Orixás: Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo", há uma série de fotografias que revelam ritos que eram mantidos em segredo pelas comunidades de terreiro.

"Desde lá, eram os brancos que estavam fazendo essa exposição porque os negros sempre tiveram as práticas do candomblé no maior segredo, até porque sabiam o risco que corriam se expusessem esse tipo de coisa. Então, o privilégio branco também dá a eles a possibilidade de expor essas práticas sem sofrer algumas represálias que talvez uma pessoa negra sofreria", afirma.

Enquanto antropólogo e homem negro, Rodney William afirma que não seria visto com bons olhos se decidisse fazer uma obra como a de Verger. "Muito provavelmente eu e qualquer outro pesquisador negro seríamos execrados dentro da religiosidade porque seríamos acusados de violadores, mas com o Pierre Verger, que era branco e francês, não aconteceu nada. Pelo contrário, ele foi endeusado".

O sacerdote David Dias também racializa a questão e destaca uma tendência de comercialização da religiosidade. "Existem pessoas brancas que olham para o terreiro como uma possibilidade de consumo. Acho que o terreiro é um lugar popular que pode ser frequentado por pessoas brancas, mas elas vão estar ali para se relacionar com o diferente. Já pessoas negras vão para se reencontrar com sua ancestralidade", pontua.

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