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Lula encara nó fiscal e cenário econômico desafiador em terceiro mandato

30/10/2022 21h13

Por Bernardo Caram

BRASÍLIA (Reuters) - Eleito neste domingo em votação de segundo turno para retornar à Presidência da República pela terceira vez, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) iniciará o processo de transição de governo cercado de incertezas a respeito do quadro fiscal do país a partir do ano que vem e sem ter entrado ainda em detalhes sobre seu plano para a economia e de que maneira viabilizará promessas de campanha.

O desfecho da eleição se dá em meio a um cenário mundial adverso, com bancos centrais de economias avançadas promovendo aumentos de juros na tentativa de controlar a disparada da inflação e impondo risco de uma recessão global, desaceleração econômica da China, guerra na Ucrânia e uma intolerância crescente dos mercados globais a governos fiscalmente irresponsáveis.

Enquanto discute a formação de governo, a distribuição de aliados em cargos na Esplanada dos Ministérios e a aguardada formação da equipe econômica, o petista precisará correr se quiser viabilizar ainda neste ano um dos seus principais compromissos para 2023, o de tornar permanente o valor do Auxílio Brasil de 600 reais por família --pela regra atual, o benefício retornará a 400 reais em janeiro.

Para isso, provavelmente será necessário propor, articular e aprovar em dois meses alguma emenda constitucional para flexibilizar regras fiscais, uma vez que não há espaço para a despesa adicional no ano que vem dentro da regra do teto de gastos, que limita o crescimento total das despesas do governo, nem receitas suficientes para cobrir o novo valor.

A negociação política terá que ser feita com um Congresso que terá parte dos deputados e senadores em término de mandato --a formação do Legislativo pós-eleições, com nova composição de bancadas e forças, apenas tomará posse no dia 1º de fevereiro.

“O ideal já seria ter (ainda neste ano) outra âncora que não o teto de gastos, ou uma reformulação do teto. Mas isso é o ideal, o ótimo é inimigo do bom. Não sei se em dois meses tem essa possibilidade”, disse uma fonte do PT à Reuters, na condição de anonimato.

“Vai depender da conjuntura política. Se não der, vai ter que ter uma transição”, afirmou, acrescentando que o governo eleito poderia capitanear a aprovação de um "waiver" (licença para descumprir) para a regra do teto em 2023, ganhando assim tempo para articular uma âncora substituta.

Ainda não está claro quem lideraria a empreitada. Ao longo de toda a campanha, Lula resistiu à pressão para antecipar nomes de ministros, especialmente do eventual chefe da equipe econômica, cargo para o qual disse que buscaria uma "cabeça política". O argumento era que a apresentação de indicados antes da eleição poderia gerar desgaste à campanha e atritos entre os partidos que apoiaram a candidatura.

Passaram pelas bolsas de apostas nomes como o governador da Bahia, Rui Costa, o ex-governador do Piauí Wellington Dias, o deputado federal Alexandre Padilha e o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, além do agora eleito vice-presidente Geraldo Alckmin, que serviu como sinalização de Lula ao centro, atraindo apoio de representantes do mercado e de economistas ortodoxos.

    Especulações também apontavam o ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles como cotado para a vaga, ainda que fontes próximas a Lula vinham negando essa hipótese.

TETO DE GASTOS

As diretrizes do programa de governo do PT propõem a revogação do teto de gastos, aprovado em 2016 para limitar o crescimento das despesas públicas federais à variação da inflação, e afirmam de maneira genérica que é preciso rever o regime fiscal brasileiro, "atualmente disfuncional e sem credibilidade".

"A responsabilidade fiscal está dentro da concepção de governo que eu tenho. A gente não pode gastar mais do que arrecada, mas a gente pode contrair uma dívida se você for construir um ativo novo, alguma coisa que signifique aumentar a produtividade desse país”, afirmou Lula na última semana.

Na reta final da campanha, auxiliares do petista passaram a dar pistas sobre propostas para substituir o teto, com duas opções colocadas entre as mais cotadas, mas frisando que a definição seria feita apenas após o resultado da eleição.

A primeira prevê a volta da meta de superávit primário como principal âncora fiscal do país, não com um valor fixo, como já é adotado, mas com bandas que permitam ajustá-la de acordo com os ciclos da economia.

Uma segunda proposta seria uma regra de reajuste do limite das despesas pelo IPCA e por um outro indicador, ainda não definido, mas que abriria espaço para um crescimento real das despesas.

A fonte do PT e outro conselheiro do presidente eleito afirmaram que, para comportar o custo total das medidas já articuladas pelo presidente Jair Bolsonaro e as ações defendidas por Lula, seria preciso buscar um espaço de 150 bilhões de reais a 200 bilhões de reais dentro do teto no Orçamento de 2023.

O aumento de gastos previsto para o ano que vem deve ocorrer em meio a um retorno do déficit nas contas do governo central após o provável --e pontual-- superávit a ser registrado em 2022, o primeiro em nove anos. O Orçamento proposto pelo atual governo prevê um rombo de 63,7 bilhões de reais em 2023, déficit que será maior se o Auxílio Brasil turbinado for mantido e se houver correção da tabela do Imposto de Renda (IR), outra promessa de Lula.

REFORMAS

Na área tributária, a campanha petista vinha defendendo uma reforma no sistema para que os impostos sejam mais progressivos, com unificação dos tributos sobre consumo e desoneração de produtos com maior valor agregado e tecnologia, além da taxação de dividendos e a isenção do pagamento de IR para quem ganha até 5 mil reais.

“Vamos colocar os pobres outra vez no Orçamento e os super-ricos pagando impostos”, diz o documento com as diretrizes de governo.

Outra iniciativa prevista é a renegociação de dívidas de famílias, com o programa Desenrola Brasil, que pretende reestruturar até 95 bilhões de reais em débitos não bancários.

O programa trabalhista do governo eleito, por sua vez, defende uma nova legislação “de extensa proteção social a todas as formas de ocupação, de emprego e de relação de trabalho”, com Lula destacando em discursos sua preocupação de regulamentar os trabalhos por aplicativos.

A gestão petista também pretende retomar a política de valorização real do salário mínimo, interrompida no governo Jair Bolsonaro, que é simpático à ideia de desindexar o piso salarial, desobrigando o governo de corrigir o valor com base na variação da inflação.

Um dos eixos centrais previstos pelo PT é o de desenvolvimento econômico que proteja o meio ambiente, com uma guinada verde na reforma tributária, incluindo incentivos a setores em transição ecológica e possível criação de uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) Ambiental, que incidiria sobre atividades poluidoras ou degradantes. Também há estudos para a criação de linhas de crédito sustentáveis com juros mais baixos.

O programa ainda prevê uma transição para nova política de preços de combustíveis que considere custos nacionais --hoje a Petrobras define os preços domésticos a partir das cotações do barril do petróleo e do dólar.

Tópico prioritário para o atual governo, a agenda de privatizações deve ser travada na gestão petista. Nessa área, Lula indicou, por outro lado, que não trabalhará para reverter vendas de ativos implementadas pela gestão Bolsonaro.

BC INDEPENDENTE

O governo Lula terá que lidar com um Banco Central independente e comandado até 2024 por Roberto Campos Neto, nomeado por Bolsonaro. A atual composição do BC já indicou que manterá a taxa básica de juros no nível contracionista de 13,75% ao ano pelo menos até o meio de 2023 para garantir o retorno da inflação às metas, o que tende a desacelerar a economia do país.

Por outro lado, o petista retornará ao poder em meio a um cenário de baixa na inflação, que vem arrefecendo gradualmente, em tendência mais positiva do que outros países, apesar de ainda estar acima da meta.

Embora não tenha mencionado a campanha de Lula, Campos Neto disse em setembro, ao ser questionado sobre o ambiente eleitoral, que os mercados globais passaram a reagir negativamente a programas governamentais que ampliem gastos.