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Solista brasileira do Balé de Joanesburgo espera fim da pandemia para interpretar papel principal de Dom Quixote

30/05/2020 11h33

A bailarina clássica Monike Cristina Macedo de Souza tem 28 anos, é paulista da cidade de Piracicaba e completou a sua formação de dança em Berlim e Nova Iorque. Já profissional, trabalhou no Rio de Janeiro e São Paulo, excursionou pela Rússia e Ucrânia com o balé Bolshoi, dançando o Cisne Negro. Há quatro anos, mora em Joanesburgo, África do Sul, e é solista do balé da cidade.

Monike Cristina estava interpretando o personagem principal do clássico Dom Quixote, quando o mundo foi surpreendido pela pandemia da Covid19. A temporada do espetáculo foi suspensa, depois que o governo sul-africano decretou estado de calamidade pública e o país entrou em quarentena. 

Monike falou à RFI da nova rotina e dos desafios em tempos de pandemia.

Balé na pandemia

Nada mais promissor do que começar o ano com o espetáculo do clássico Dom Quixote. A bailarina paulista e solista principal do balé da cidade de Joanesburgo, Monike Cristina, no papel da camponesa Kitri estava radiante. De repente tudo mudou. O mundo foi surpreendido pela pandemia da Covid19, a companhia entrou em isolamento e cada um foi para a sua casa, viver uma nova rotina.

"Estamos tendo aulas de balé clássico todos os dias. Como a gente está fazendo aula em pisos não apropriados é perigoso escorregar e se machucar. Então, a gente está fazendo aulas adaptadas, para o espaço que cada um tem", conta.

Dança: Brasil X África do Sul 

Dançar profissionalmente no Brasil é muito difícil. A profissão não é vista como trabalho profissional e isso faz com que grandes talentos sejam obrigados a procurar trabalho em companhias internacionais, deixando de representar o Brasil.

"Falta ao governo olhar para a arte como algo que vai acrescentar. E não somente pensar, 'são vagabundos que não querem estudar!' Pra você ser um bom artista, tem que estudar muito. É triste! Muitos bailarinos brasileiros acabam saindo do país para fazer a vida onde tem reconhecimento", ressalta a paulista.

Bolshoi e Cisne Negro

A trajetória de Monike tem acontecido de forma natural. Com 18 anos, concluído o colegial, com experiência internacional e profissional, ela já trabalhava há um ano, contratada, em uma companhia. Um coreógrafo, integrante do Bolshoi Brasil, que foi convidado pelo grupo ficou impressionado com Monike, filmou um ensaio e mostrou para seu diretor. A jovem foi contratada e passou a trabalhar no Bolshoi Brasil, com sede em Joinville, Santa Catarina.

Em um determinado momento, a mais famosa companhia de balé do mundo estava procurando uma bailarina negra para fazer um solo no Cisne Negro, e o Bolshoi Brasil recebeu o coreógrafo russo Ruslan Nurtdinov, para comandar as audições. Monike foi a escolhida para viver o personagem, mas, antes o Bolshoi Brasil fez uma excursão internacional, que começou em Schaffhausen, na Suíça.

Em seguida, viajou durante dois meses, pela Rússia e Ucrânia respirando o jeito Bolshoi de ser, mas a experiência indelével foi vivenciar a sua cor em perspectiva diferente.

"Foi uma surpresa para mim. Achei que iria enfrentar algumas resistências. Mas não! Fui super bem recebida. As pessoas me olhavam com admiração pelo meu trabalho, pela minha simplicidade, por tudo que eu apresentei no palco. Não tive problema nenhum com a questão racial. Fiquei impressionada". 

Onde tudo começou

Tudo começou quando a sua mãe a levou, com cinco anos de idade, para ver um espetáculo de encerramento do ano letivo de uma escola de dança da sua cidade. Era uma típica confraternização de final de ano, onde as crianças apresentam aos pais o que aprenderam durante o ano. Tinha números de sapateado americano, dança moderna, jazz e balé clássico. Ao final, diante da pergunta "De qual você mais gostou?" A menina não titubeou, e saiu dando saltos e piruetas pelo meio da casa, demonstrando a sua preferência.

A mãe, pensando em sapatilhas, maiôs, meias e mensalidades, sabendo ser essa a opção mais cara, tentou dissuadir a menina: "Não gostou dos sapatinhos que fazem barulho?". "Não!!". O balé foi paixão à primeira vista. Com o passar dos anos, essa paixão só cresceu, e nada, nem ninguém, conseguiram convencê-la a fazer outra coisa na vida.

Gosto por música clássica

A mãe trabalhava como vigilante de um hospital. Do pai pouco sabe, porque ela era muito pequena quando eles se separaram, e perderam o contato. A família sempre foi a mãe, a avó, o avô, tios e primos. 

O avô ficou órfão muito cedo, foi criado por uma família rica da cidade de Piracicaba e teve acesso à educação de qualidade, livros e música. Na faculdade se apaixonou por uma estudante, cantora lírica, com quem se casou. Monike foi ninada com arias que sua avó cantava e a música clássica tocada na casa.

Adolescência e a descoberta das diferenças

Como muitos adolescentes, a jovem preenchia o tempo de espera em filas de ônibus ou no recreio da escola ouvindo música clássica. A pergunta dos curiosos se repetiu muitas vezes: "Tá ouvindo o quê?" A resposta gerava surpresas, desdéns e deboches. "Eu não era riquinha. Era negra, humilde, estudava em escola pública...".

Parecia que o direito de ser erudita lhe era proibido, e que deveria ter um comportamento de acordo com o que a sua condição social impunha. Sua preferência musical se tornou um problema. A turma da escola, do bairro, da igreja, da comunidade negra, todas as turmas achavam-na metida. "Muita gente achava que eu me achava, mas essas coisinhas que vinham de fora eram, pra mim, somente comentários, nunca levei a sério, porque eu tinha apoio total em casa".

Consciência negra

O avô historiador ministrava palestras em eventos como o Dia da Consciência Negra e a família sempre se fazia presente. Muitas vezes a pergunta se repetiu: "E a garota, quando vai começar a dançar com a gente?" "Ela tá fazendo balé clássico". "Balé? Por que não uma dança mais próxima das raízes? Ah! já sei, ela quer ser branquinha..." "O preconceito no Brasil sempre esteve presente e explícito", denuncia. 

Hora de decisão

A adolescência de Monike não teve festinhas com a turma, cinema à tarde, beijos roubados ou festa de 15 anos. Com 14 anos, falou para a mãe que seu sonho era ser bailarina profissional. A mãe, sabendo ser muito cedo para uma decisão definitiva, juntou as economias e a mandou para o seminário anual e internacional de Brasília, para que ela tivesse contato com a realidade da profissão.

Durante um mês, professores de diversas partes do mundo ministram aulas para bailarinos profissionais e aspirantes. Realizam audições e os mais qualificados recebem convites para outros seminários ou contratos de trabalho em companhias nacionais e internacionais. O dinheiro da garota dava somente para pagar algumas aulas. Fez as aulas possíveis. Ver e ser parte atuante da dança foi somente a confirmação de que queria se tornar profissional.  

O mundo do balé

Construir carreira no balé, além da disciplina física para atingir um nível técnico de alto padrão, o aspirante também precisa de um maître, um mestre. É necessário dinheiro para contratar um.

Na impossibilidade de encontrar um professor em Piracicaba, a sua mãe entrou em contato com a mestre Camilla Pupa, na capital São Paulo. Porém, era muito caro para a família.

A mãe conseguiu então um professor amigo e Monike passou a viajar três vezes por semana à capital, para ter aula e orientação com o mestre. Uma jornada longa, e arriscada, para uma garota que acordava às 5h da manhã, ia para o colégio; ao meio-dia, corria para a rodoviária, pegava o ônibus e viajava 2h30.

Em São Paulo, pegava o metrô e chegava ao estúdio, que sua mãe tinha conseguido, sem pagar mensalidade e alojamento, quando necessário. O tempo para realizar a façanha era cronometrado. Um desvio e perdia o ônibus, das 21h, da volta para Piracicaba. 

Sob a orientação do mestre, conseguiu o primeiro convite para um seminário internacional, em Berlim. "Convite", no mundo do balé, significa que a pessoa tem nível técnico para concorrer com bailarinos de alto padrão, mas tem que arcar com as despesas do seminário, passagens aéreas, hospedagem, muitas vezes em hotéis cinco estrelas, e alimentação, inclusive do mestre. 

Tudo parecia impossível, mas as ajudas foram surgindo de todos os lados e a garota também vendeu muita rifa. Depois de Berlim, no mesmo ano, fez audição para um seminário em Nova Iorque e foi aceita. O desafio foi mobilizar novamente amigos e familiares em torno da causa, mas valeu a pena, porque ganhou a competição, com prêmio em dinheiro. Entretanto, o fato de ter sido selecionada para seminários importantes, em tempo recorde, gerou ciúmes no grupo e a relação com o mestre se desgastou e acabou de forma melancólica. 

Nova mestre

De volta a sua rotina em Piracicaba, a mestre paulista que a sua mãe tanto queria e não podia pagar, acabava de se instalar na cidade, abrindo uma companhia semiprofissional e Camilla Pupa abraçou a garota com imensos braços de mãe.

A mestre Camilla sempre frisou que o talento era muito importante, a cor da pele era mero detalhe. A preparação mental no balé é tão importante quanto a física. Monike conviveu com interjeições jocosas ao longo do percurso: "Você é bailarina clássica, negra!?"  "Minha resposta, já mais experiente, era: Ah! eu sou diferente, é?" 

"Dançar para mim sempre foi tão natural, que eu só me lembrava de cor, se alguém falasse". Mas, chegou uma hora que recebia conselhos tipo: "O perfil de tal audição, não é o seu. Não vale a pena fazer". "Eu ouvia e no dia seguinte ia, fazia e era aceita. Isso foi bom? Foi bom e ruim, como tudo na vida. Eu fui criando certos inimigos, probleminhas". A minha mestre falava: "Você tem físico de bailarina branca, é longilínea com uma pele fora do comum. Em qualquer lugar do mundo, tem lugar para você, pelo seu diferencial, versatilidade e paixão natural, sem revolta". 

Com a mestre Camilla ainda recebeu sete convites internacionais. Juntas analisavam. E a mestre  sempre disse: "Não se deslumbre com o país, veja o que estão lhe oferecendo". E veio o primeiro contrato profissional, com uma companhia na cidade de Campos, no Rio de Janeiro.

Projetos e sonhos

As companhias de balé também estão sentindo a crise, como qualquer empresa e Monike Cristina está participando de uma campanha para arrecadar fundos para os profissionais de dança que ficaram desempregados. "Fui convidada pela primeira-bailarina do American Ballet Theatre, Misty Copeland, para me juntar ao projeto A Morte dos Cisnes. São 32 bailarinas, de diferentes países, dançando solos de A Morte do Cisne. As pessoas podem doar e ajudar as companhias de balé, que como outras empresas, estão em crise. Muitos bailarinos ficaram sem emprego". 

Apesar de viver em um mundo paralelo, Monike é uma jovem adulta e tem sonhos como qualquer pessoa. Deseja subir mais um degrau na carreira e ser primeira-bailarina, mas também deseja ser mãe. Tem uma relação de amor estável com um bailarino brasileiro que, por coincidência, trabalha neste momento na mesma companhia, mas já viveram em diferentes partes do mundo. "Acredito que, na vida, nada acontece por acaso. Reencontrei um conterrâneo bailarino, passamos a nos admirar mutuamente. É possível ter uma família planejada".

Como sobreviver à competição diária 

"Na companhia, como nas escolas, tem os mesmos ciúmes, os preferidos, os protegidos, os que se sentem injustiçados. A diferença é que, como profissional, você não pode falhar. E tem que aceitar não ter sido escalada para tal papel, tecnicamente a escolhida é melhor do que você. É preciso ter a cabeça muito no lugar. Ser muito focado, porque senão a pessoa se perde".

Inspiração

Monike admira as russas Uliana Lopatkina, Darcey Bussel, a brasileira Daniela Severian, os russos Mikhail Baryshnikov e Vadim Muntagirov, o italiano Roberto Bolle, o cubano Carlos Acosta, mas a sua grande musa inspiradora se chama Cristiane Berenice de Macedo Silva, sua mãe. 

Depois de ter dedicado boa parte da vida a Monike, Cristiana se formou em fisioterapia, casou novamente e lhe deu uma irmãzinha de presente, hoje com seis anos de idade.