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Homofobia: vídeo ironiza adoção por casal gay durante campanha política na Rússia

04/06/2020 14h10

Um vídeo divulgado esta semana nas redes sociais na Rússia está sendo acusado de homofobia. As imagens, que fazem parte da campanha para a reforma da Constituição que deve ser votada em 1° de julho, mostram um casal gay de forma caricata e ironizam a possibilidade de adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo.

Com informações de Daniel Vallot, correspondente da RFI em Moscou

Em 1° de julho os russos vão às urnas para votar uma importante reforma da Constituição do país. Uma das principais mudanças na Carta Magna é a possibilidade de prolongar a permanência no poder do presidente Vladimir Putin, que termina seu quarto mandato em 2024.

Mas o texto também traz mudanças de ordem moral no país. O exemplo mais emblemático dessa reforma, que conta com o apoio de Putin, é que a nova Constituição prevê que um casamento é uma instituição formada apenas por um homem e uma mulher, excluindo legalmente o reconhecimento de qualquer tipo de relação homossexual em um país que tem registros de forte intolerância contra a comunidade LGBTQI+.

"Uma família de verdade"

Para chamar a atenção dos eleitores para esse aspecto da lei, uma campanha de vídeo foi lançada nas redes sociais, principalmente no VKontakte, o equivalente russo do Facebook. O filme se pretende futurista e mostra uma cena em um orfanato no ano de 2035, com um garoto que espera para encontrar sua nova família. Ao sair do prédio, o menino descobre que os pais adotivos são um casal homossexual. Ao perguntar onde está sua mãe, um dos pais responde à criança, apontando para o companheiro: "Esse é a sua nova mãe. Mas não se preocupe, nós seremos uma família de verdade".

O vídeo continua mostrando o momento em que um dos pais, que usa maquiagem e imita trejeitos femininos, dá um vestido de presente para o garoto. As funcionárias do orfanato se mostram surpresas com a situação e uma até cospe no chão, em sinal de desprezo. A história termina com a mensagem "Que Rússia você quer? Decida o futuro de seu país e vote para a reforma da Constituição".

Em menos de uma semana, o filme de dois minutos já tinha sido assistido mais de um milhão de vezes e suscitou muitas reações, tanto da oposição quanto de personalidades da sociedades civil, que denunciam o caráter homofóbico das imagens. Além de mostrarem um casal gay caricato, o vídeo ironiza a adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo e insinua que pais homossexuais teriam uma influência na identidade de gênero de seus filhos.

Associações de defesa das minorias criticaram abertamente a campanha. "Estamos convencidos de que esse vídeo incita ao ódio e viola a dignidade humana", declarou por meio de um comunicado a associação de apoio à comunidade LGTBQI+ Stimul. O grupo anunciou que vai prestar queixa contra os responsáveis pelas imagens e pede o bloqueio do vídeo.

Autores dizem que apenas defendem a família

O vídeo foi patrocinado e divulgado por uma agência de comunicação ligada a Evguéni Prigojine, um empresário próximo de Vladimir Putin. Seu nome é conhecido do grande público por ter sido acusado de envolvimento nas denúncias de influência russa nas eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos.

Questionada sobre o teor do filme, a agência responsável pela produção afirma que não se trata de uma campanha anti-gays. Segundo os autores, o objetivo principal é defender a instituição da família e os valores tradicionais no país. Um discurso frequente na alta cúpula do poder na Rússia, como apontam vários projetos de lei apresentados pela administração Putin.

A medida mais emblemática nesse sentido foi a entrada em vigor, em 2013, de uma legislação federal que ficou conhecida como "lei anti-propaganda gay". Oficialmente, o texto condena a "propaganda de relações sexuais não-tradicionais diante de menores", com multas e penas de prisão. Severamente criticada pelas organizações de defesa dos direitos humanos, a lei é vista por muitos como uma associação direta entre pedofilia e homossexualidade, o que acabou, de uma certa forma, legitimando um discurso cada vez mais homofóbico no país.

Essa, aliás, não é a primeira vez que um filme acusado de homofobia é usado em campanhas políticas na Rússia. Em 2018, durante a campanha presidencial, um vídeo incitando a população a votar - como uma clara tendência pró-Putin - se baseava na fake news de que quem não fosse às urnas seria obrigado a adotar um homossexual.

Adoção por pais homoafetivos não é reconhecida

Nenhuma lei proíbe oficialmente a adoção de crianças por casais russos homoafetivos. No entanto, as uniões entre pessoas do mesmo sexo não podem ser oficializadas, o que impossibilita o reconhecimento da adoção.

Já para os estrangeiros, desde 2013, na esteira da "lei anti-propaganda gay", apenas casais heterossexuais podem adotar no país. Além disso, estrangeiros que não sejam oficialmente casados só têm acesso à adoção na Rússia se vierem de países onde o casamento entre pessoas do mesmo sexo é proibido.