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'É preciso que a sociedade mobilize suas forças contra um governo de tendência fascista', diz filósofo Vladimir Safatle

O filósofo Vladimir Safatle - Eduardo Knapp/Folhapress
O filósofo Vladimir Safatle Imagem: Eduardo Knapp/Folhapress

05/06/2020 10h11

Diante das ameaças de intervenção militar e ruptura institucional, diversos grupos e manifestos surgiram no Brasil para defender a democracia brasileira e se opor ao governo de Jair Bolsonaro (sem partido), como #Somos70porcento, Todos Juntos e Basta. Vinda de articulações apartidárias ou de horizontes políticos distintos, a mobilização é necessária para combater um governo de tendência fascista, defende o filósofo Vladimir Safatle.

"Todas essas manifestações são fundamentais, a ocupação das ruas e a pulverização dessa frente, porque o Brasil vive hoje uma crise dupla: o coronavírus e o Bolsonaro, e essas crises não podem continuar juntas, porque uma se alimenta da outra", argumenta.

Safatle destaca a "irresponsabilidade" do governo do presidente Jair Bolsonaro pelo grande número de mortos no país pela pandemia da covid-19. Ontem, o Brasil se tornou o terceiro país no mundo com o maior número de mortos pela doença, um total de 34.020, superando a Itália.

"Nós não temos mais condições de aguentar ou suportar esse governo. Todas as ações que forem feitas para que esse governo seja afastado e as instâncias federais possam agir com políticas adequadas para garantir a vida de brasileiras e brasileiros são absolutamente necessárias e legítimas", acrescenta.

Por outro lado, o filósofo e professor da USP (Universidade de São Paulo) refuta os questionamentos de que muitos desses movimentos possam ser usados como uma "possibilidade de redenção" por aqueles que estariam arrependidos por posturas defendidas no passado, como o apoio à destituição da presidenta Dilma Rousseff (PT).

"Essas críticas são inadequadas e equivocadas. Ao menos neste momento é preciso que a sociedade brasileira consiga mobilizar todas as suas forças contra um governo que tem sustentação popular, não é impopular. É um governo que tem ao menos 30%, não de apoiadores, mas de pessoas ideologicamente identificadas com esse governo, de clara tendência fascista", afirma.

"Neste contexto, a frente se justifica. Em hipótese alguma deve se configurar como uma frente de governo, é uma frente completamente pontual. Os setores de oposição, vinculados de centro direita ou de esquerda, vão se clarificar nesse processo. Em um segundo momento eles vão se digladiar, mas agora não é possível que a população brasileira se submeta a um governo de tendência fascista", insiste.

Intervenção militar

Diante dos temores de que manifestações de rua, como as convocadas para este final de semana em oposição ao governo, ganhem contornos de violência para eventualmente reforçar a narrativa da necessidade de intervenção militar, o filósofo alerta: "Não há nenhuma necessidade de que alguma coisa justifique um desejo de intervenção militar, porque essa intervenção militar já existe. Isso é uma chantagem que está sendo feita conosco".

Em sua opinião, já existiria um plano para uma intervenção, o processo é afirmado "quase toda semana", assim como as intimidações.

"O Brasil está sob ameaça de intervenção militar contínua desde que o senhor Bolsonaro assumiu o governo. Eles querem colocar isso na conta das manifestações, e é claro que vão tentar fazer isso, e utilizar outros setores para criar confusão nas ruas. A verdade é que o Brasil estará de fato sob risco de intervenção militar enquanto esse governo existir", adverte.

Vladimir Safatle observa que o governo Bolsonaro já tinha reforçado o clima de confrontação desde antes da pandemia do coronavírus, amparado nas manifestações em frente ao Palácio do Planalto, com pedidos de expurgo de parlamentares e para o fechamento do STF.

"É importante que não só a população brasileira, mas a opinião pública internacional entenda que, dentro da situação atual, não há outra alternativa para os setores majoritários da população do que não confrontar diretamente o governo e assumir os riscos", diz.

O "jogo" das Forças Armadas

Safatle recorre à grande presença de militares em diversos escalões do governo para defender a tese de que a intervenção militar já existe. "Nunca na história, nem mesmo durante a ditadura, tivemos tantos militares no primeiro e segundo escalão. Só que as Forças Armadas fazem um jogo, fingem que não estão no governo, atuam como um poder moderador."

Para o professor da USP, as Forças Armadas são atualmente a grande responsável pela situação de caos no país.

"Bolsonaro não existiria se não tivesse o apoio das Forças Armadas. Elas dão a impressão de que estão no governo apenas como 'operador técnico', o que está longe de ser a verdade. Por outro lado, as Forças Armadas sempre foram na história brasileira uma gestora e produtora do caos social. Não é possível ter no país um ator político constante como as Forças Armadas, isso não existe sequer em uma democracia liberal. No Brasil, elas não só fazem como entram no jogo político a todo momento. E elas fazem apoiando certos setores da sociedade brasileira contra outros. Elas mobilizam o caos", sustenta.

Em favor do impeachment

Na entrevista à RFI de seu apartamento em São Paulo, onde está confinado, Vladimir Safatle defende que a saída para a crise política passa pelo afastamento do presidente do poder. "Não há outra saída senão o impeachment do Bolsonaro, ele tem que ser afastado pela quantidade de crimes de responsabilidade que esse senhor cometeu. E mais do que isso. Ele conseguiu, com uma política absolutamente irresponsável, indiferente e insensível às mortes de brasileiras e brasileiros, criar um genocídio neste país."

O filósofo comenta que o número de mortos pela covid-19 pode ser três ou quatro vezes maior do que se tem conhecimento, em função das subnotificações. "Isso poderia ser evitado. Nós vimos o que acontece em outros países, na Espanha, França, Itália, Inglaterra. Por exemplo, a Argentina teve uma política muito mais responsável, o número de mortos foi ínfimo. Ou seja, a quantidade de mortos (no Brasil) vai nas contas deste senhor (Bolsonaro). Ele é o responsável direto por isso, por essas mortes, por isso ele deve ser afastado e julgado", conclui.