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Governo francês dividido sobre estatísticas étnicas para lutar contra racismo

15/06/2020 13h25

Estabelecer um censo étnico da população francesa pode ajudar o país a combater o racismo ou coloca em risco o modelo universal da França? Este debate ganha terreno e divide opiniões na França após o fortalecimento do movimento antirracista. O presidente Emmanuel Macron pensa que ainda não é o momento de coletar e tornar públicas estatísticas sobre a composição étnica do país; a porta-voz da presidência defende abertamente a ideia; a esquerda radical e a extrema direita convergem e são contra.

Por Alex Sinclair

No Brasil e em países anglo-saxões essa é uma prática comum, mas o censo étnico segue sendo um tabu na França. No país europeu, recensear a população em função de critérios raciais remete a momentos sombrios da Ocupação e vai contra sua concepção universalista da humanidade.

Esse consenso, no entanto, é questionado no momento em que o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) e o assassinato de George Floyd ecoam com força na França. O debate sobre a necessidade de realizar estatísticas étnicas transcende as divisões políticas tradicionais, provocando desacordos inclusive entre integrantes do Executivo.

No sábado (13), a porta-voz do governo Sibeth Ndiaye escreveu um artigo de opinião no jornal Le Monde. "Por que não abordar com calma e construtivamente o debate sobre estatísticas étnicas?", pergunta a porta-voz, que é negra, de origem franco-senegalesa. Ela escreve que ao fazer do "universalismo a base de nossas leis, somos incapazes de medir e encarar a realidade como ela é e permitimos que as fantasias floresçam". Sibeth Ndiaye afirma ter sido vítima de "racismo".

O censo étnico "ajudaria a reconciliar dois lados de nossa sociedade sempre divididos: aqueles que dizem que 'negros e árabes, pessoas de cor não têm acesso a nada' e os outros que dizem: "o problema não é esse'", defendeu Ndiaye nesta segunda-feira (15) em entrevista à rádio France Inter.

Censo geográfico

Outros ministros apoiaram um censo diferente. "Sou a favor do projeto de Julien Denormandie (ministro da Cidade e da Habitação), que propôs um censo de geográfico", disse Gérald Darmanin, ministro de Ação Pública e Contas. Segundo ele, "quando você vem de um bairro carente, por causa do seu endereço e independentemente da cor da sua pele, é mais difícil encontrar um estágio do que quando você, mesmo não sendo branco, como dizem hoje, mora no 7º distrito de Paris ", referindo-se a um um dos bairros mais caros da capital francesa.

Já o ministro da Economia, Bruno Le Maire, rejeita categoricamente a ideia. "Continuo me opondo às estatísticas étnicas que não correspondem ao universalismo francês e ao fato de um francês ser francês, independentemente de sua raça, origem, religião", salientou Le Maire.

O Presidente Emmanuel Macron tentou encerrar o debate, por enquanto. Ele disse a seus assessores nesta segunda-feira que não queria "abrir neste momento" a discussão sobre estatísticas étnicas.

Sombra de Vichy

Prova de que a questão vai além das linhas ideológicas tradicionais, a esquerda radical e a extrema direita se opõem ao uso dessas estatísticas. "Vamos implementar a maneira americana de recensear as pessoas pela cor? Essa não é a minha visão. Tenho uma visão profundamente republicana", disse Marine Le Pen, líder da Reunião Nacional de extrema direita. "Sei que isso leva à divisão, conflito e violência" e "quero paz no meu país, serenidade e unidade", insistiu o chefe da antiga Frente Nacional.

Por seu lado, o líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, que já caracterizou no passado as estatísticas étnicas de "naufrágio intelectual" típico de "Vichy", o governo colaboracionista francês, considera que o instrumento não ajuda na luta antirracista. "A experiência mostra que eles (os censos) não facilitam a luta contra a discriminação. Os países anglo-saxões, campeões da contagem étnica, também são os piores na luta contra a segregação racial e as desigualdades de todos os tipos ", afirmou o político da esquerda radical em 2007.

A Comissão Consultiva Nacional de Direitos Humanos (CNCDH) reiterou neste domingo sua hostilidade em relação ao censo étnico, que, segundo a entidade, "é um instrumento neutro". O reconhecimento estatal de categorias étnicas ou raciais corre o risco de "essencializar", isto é, de impor a esses grupos sociais uma identidade fixa, acredita a CNCDH.