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Covid-19 deve afetar o futuro das migrações internacionais

16/06/2020 15h34

A pandemia de Covid-19 trouxe muitas incertezas sobre o futuro próximo. Além das consequências sociais e econômicas, muita gente se pergunta se poderá voltar a viajar como antes, já que a difusão do coronavírus ocorreu, justamente, por causa da circulação de pessoas. Contudo, para o embaixador do Brasil na França, ainda que seja um obstáculo temporário, a epidemia não deverá frear o curso da globalização.

É claro que a humanidade já viveu pandemias antes, como a Peste Negra, no século XIV, ou a gripe espanhola, que matou 50 milhões de pessoas em 1918. Em 2020, no entanto, pela primeira vez o mundo inteiro parou por causa do novo coronavírus e praticamente todas as populações enfrentaram as mesmas condições.

Com a globalização, o novo coronavírus, que surgiu na China, viaja para todo o planeta. Em praticamente todos os países, ruas ficaram desertas e o comércio foi fechado. Um terço da população mundial entrou em isolamento. Capitais internacionais, como Paris, tornaram-se irreconhecíveis. O uso de máscaras, já comum na Ásia, entrou para a rotina dos ocidentais.

Só no primeiro semestre, foram registrados mais de 7 milhões de contaminações, que provocaram mais de 431 mil mortes ao redor do mundo. Dois terços dos casos estão concentrados na Europa e nos Estados Unidos. Um cenário internacional propenso ao surgimento de novas medidas protecionistas.

"Futuro das migrações internacionais"

O assunto foi discutido no encontro "Futuro das migrações internacionais e as perspectivas sobre a circulação de pessoas, bens e serviços no mundo pós-pandemia", que reuniu através da Internet, nesta terça-feira (16), executivos de grandes montadoras de veículos, como Renault-Nissan, Scania, além do diplomata Luís Fernando Serra, atual embaixador do Brasil na França.

Com a experiência de quem já passou por 11 embaixadas antes, em 4 continentes, Serra acredita na retomada da circulação internacional após um contexto de restrições. A previsão do Fundo Monetário Internacional é de uma redução de 3% do PIB mundial em 2020.

"Há um instinto de proteção nas horas de crise. Contudo, desde que os chineses abriram a rota da seda, o mundo não parou de se globalizar", afirma o diplomata. "Nas crises, há um recuo dessa globalização, mas depois de alguns anos, podemos ver que esse impulso é retomado e continua mais forte do que antes", acrescenta. "A crise de 2008, por exemplo, não impediu que a China se tornasse a fábrica do mundo. Ou seja, a globalização sempre encontra seus caminhos".

De acordo com o embaixador do Brasil na França, esse instinto protecionista resultante da incerteza global trará consequências a curto prazo. "Isso vai fazer com que países não queiram depender de um só fornecedor externo. Porém, não vejo como os países possam se fechar inteiramente, passando a produzir tudo em casa, pois o consumidor não vai pagar por isso", acredita Serra. "Fechar-se e produzir tudo domesticamente, a qualquer preço, poderia ser até bom para o Brasil, que tem 210 milhões de habitantes. Entretanto, imagina uma Suécia se fechando?", questiona.

"Haverá acomodações e relocalização da produção. Porém, os países do primeiro mundo vão perceber que não adianta fazer artigos sem valor agregado. Ou seja, a saída é cada vez agregar mais valor. Porque com os custos que têm, eles não podem competir com nações recentemente industrializadas, com custos mais baixos", diz. "Eu não vejo um momento em que a globalização não repartirá para novas conquistas", aposta.

O embaixador cita como exemplo a compra de material de proteção individual para o combate à Covid-19. "Na França, ninguém queria depender das máscaras da China. Mas quando viram o custo que seria produzir máscara na França, todos esqueceram essa premissa", diz. "Produzir localmente para consumir localmente vai custar mais. Será que o consumidor está disposto a isso em nome da soberania?", pergunta. "Eu quero ver o sujeito pagar mais, quando poderia pagar menos. Eu sou otimista em relação à globalização, que chegou para ficar, há mais de 2.000 anos", conclui

Um quebra-cabeça mundial

A circulação de mercadorias e pessoas têm um peso enorme para empresas multinacionais como a francesa Renault. "Os nossos fornecedores estão instalados no mundo inteiro, dependendo de aduanas, de transporte marítimo e aéreo", explica Joaquim Ferraz-Martins Filho, diretor jurídico da Renault do Brasil. "Além da dificuldade logística de trazer peças com urgência, as matérias-primas começaram a aumentar de preço. Outro problema é que a taxa cambial se torna incontrolável, o que dificulta operações planejadas com pelo menos um ano de antecedência", completa. "Nesse momento, estamos tentando renegociar contratos. Mas a figura jurídica da 'força maior' e a 'teoria da imprevisão' são muito invocadas, dificultando as ações da companhia", explica o executivo.

"Nesse cenário de incertezas, o planejamento a longo prazo deixou de existir", diz Natacha La Farciola, líder da área de transferências internacionais da Scania na América Latina. "O momento atual exige pensar um dia de cada vez. Não dá para prever ações para daqui dois ou três meses", acrescenta.

Crise das companhias aéreas

Quando o assunto é deslocamentos internacionais, é preciso considerar o momento delicado por que passa a aviação mundial. "Esses dois meses de congelamento das atividades econômicas levaram muitas empresas aéreas à falência. Ou seja, hoje nós temos menos companhias voando do que antes da crise", observa o embaixador Luís Fernando Serra.

"As que sobreviveram vão se aproveitar e subir os preços e a circulação das pessoas vai ficar mais cara e ineficaz do ponto de vista econômico. Contudo, como eu acredito no mercado, acho que vai haver esse período inicial em que as sobreviventes vão se aproveitar, mas surgirão outros competidores, pois quando há muito lucro todo mundo quer entrar", acrescenta.

"Muito menos gente vai voar para assinar um contrato. Por outro lado, temos o triunfo da teleconferência", destaca o diplomata. "As videoconferências chegaram para ficar, o teletrabalho conquistou novas áreas e isso vai se ampliar", acredita.

Home office e expatriações

No caso de empresas que utilizam alta tecnologia, a atividade de produção exige deslocamentos constantes de profissionais. Isso sem falar naqueles que são deslocados para outros países, os famosos expatriados. Um conceito que agora deve ser repensado em favor da redução de custos, de acordo com Saint-Claire Simas Pinheiro, gerente de remuneração e mobilidade global da Nissan.  

"É claro que existem postos em que falta mão-de-obra local e você precisa trazer alguém para um desempenho técnico, isso não vai acabar. Contudo, num momento de crise econômica, as empresas estão focadas em reduzir despesas. No pós-Covid, elas vão repensar suas estruturas e se vale a pena trazer estrangeiros", explica.

Já o teletrabalho, reforça Simas Pinheiro, é algo que veio para ficar. "Há empresas como Google e Twitter que distribuem U$ 1.000 aos funcionários para construírem seu home office para ficarem até dezembro em casa. Isso deve se tornar um aditivo contratual", acredita. "A Covid-19 mostrou que é possível trabalhar sem estar no escritório fixo. Não é tecnologia de robôs, mas sim para reunir as pessoas. E temos que sair mais fortes do que entramos nessa crise", propõe.

"Mesmo se não for mais obrigatório, um ou dois dias por semana vou ficar em casa", concorda Joaquim Ferraz-Martins Filho. "O primeiro impacto da crise foi na saúde, mas o impacto econômico para as empresas foi brutal. O teletrabalho pode ser uma solução de redução de custos", acrescenta o diretor jurídico da Renault do Brasil.

Aluguéis menores

No ramo da diplomacia, a atividade de relações exteriores funciona como "o primeiro expatriado de qualquer país". O embaixador do Brasil na França explica que as videoconferências devem tomar mais espaço na agenda das embaixadas. "No passado, nós tínhamos reuniões preparatórias para encontros plenários. Mas com os altos preços das passagens e os orçamentos apertados, essas preparatórias serão por videoconferência", afirma. "O êxito do teletrabalho, com tecnologia apurada, vai popularizar as videoconferências no trabalho diplomático, deixando os deslocamentos para as reuniões que sejam definitivas e mais valiosas, com assinatura de documentos," afirma Serra.

"Outra consequência importante é o custo do metro quadrado para escritórios. Eu tenho a impressão de que o preço vai cair por um longo tempo, pois diante do êxito do teletrabalho, muitas pessoas se perguntam se precisam ter uma sala para cada funcionário", observa o diplomata. "Paris é a capital europeia dos escritórios. Antes da crise, havia muitos edifícios sendo transformados em locais profissionais. Agora, acho que o preço vai cair, porque está sobrando oferta, já que a atividade está mais lenta e esses espaços não devem ser alugados", acrescenta.

Brasileiros na França

A crise provocada pelo coronavírus provocou a reativação de barreiras alfandegárias, mesmo dentro do espaço Schengen, a zona de livre circulação entre as 26 nações europeias. Desde segunda-feira (15), entretanto, os franceses já podem viajar dentro da Europa. Brasileiros, contudo, não devem poder viajar para o bloco europeu tão cedo. Um comunicado publicado na quinta-feira (11) pela Comissão Europeia não cita explicitamente o Brasil. Porém, afirma que "as restrições [de entrada na UE] devem permanecer se as condições internas de transmissão [no país em questão] forem piores do que no bloco".  

"Vamos ter reuniões oficiais importantes que só acontecerão se não houver quarentena para os brasileiros que chegarão para essas reuniões", diz o embaixador do Brasil na França. "Evidentemente, se não se conseguir uma permissão especial para que esses delegados comecem a trabalhar no dia seguinte à chegada, não haverá reunião presencial", diz.

No caso dos cidadãos comuns, o embaixador explica que cabe ao Consulado-Geral em Paris se ocupar desses assuntos. "No caso do nosso contribuinte, o que eu vejo é que houve a repatriação de muitos brasileiros, num esforço louvável do Itamaraty de levar de volta para o Brasil cidadãos que não tinham mais condições de ficar na França porque tinham perdido o emprego ou não tinham condições de pagar uma nova passagem", relata. "Isso foi um grande esforço e eu fico contente do trabalho feito e, às vezes, fico até contente que esses talentos brasileiros possam voltar ao Brasil e dar sua contribuição ao país", conclui.