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Covid-19: Mais expostos e com menores salários, trabalhadores essenciais serão mais afetados pela crise econômica

09/07/2020 16h55

Das portas e janelas de casa, os britânicos voltaram a aplaudir, neste domingo, o exército de 1,5 milhão de funcionários do NHS, o sistema público de saúde gratuita do Reino Unido. Comemorava-se o aniversário de 72 anos desta instituição que nasceu depois da Segunda Guerra Mundial e é considerada uma das maiores conquistas da nação. O NHS se tornou um dos símbolos do Estado de bem estar social e da reconstrução do país; serviu até de inspiração para o SUS no Brasil.

Vivian Oswald, correspondente da RFI em Londres

O prestígio de médicos, enfermeiros e tantos outros profissionais do setor de saúde, esteve em alta durante a crise sanitária. Não que isso se traduzisse em melhores condições de trabalho, ou mais equipamentos de proteção contra o novo coronavírus, uma demanda constante do período pandêmico.

Mas homenagens não faltaram. Nas 10 semanas de confinamento, toda quinta-feira, às 20 horas, religiosamente, uma salva de palmas, de cerca de um minuto, lembrava os rostos por trás das equipes que trabalhavam incansáveis nos hospitais desta ilha. Esta é a parcela visível do contingente dos chamados trabalhadores essenciais, que se mantiveram na linha de frente do combate à Covid-19 no país que registrou o maior número de mortes pela doença na Europa. 

Outras dezenas de milhões de invisíveis mantiveram a economia girando, ainda que em baixa rotação, enquanto outros tantos trabalhavam de casa. Assistentes sociais e cuidadores, empregados dos setores transportes, tecnologia, telefonia, entregas, supermercados e lojas de itens de primeira necessidade, entre elas, call-centers, farmácias, não tinham como não sair.

Motoristas de ônibus estão entre os trabalhadores mais afetados pela Covid-19 no Reino Unido. Dados oficiais indicam que a taxa de mortalidade destes funcionários do setor de transportes chegou a 26,4 mortes por 100 mil habitantes, contra os 19,8 de comerciantes e assistentes de vendas.

Ironicamente, todos esses profissionais ganham menos do que a média da população economicamente ativa e têm menos garantias sobre os seus postos no futuro. Muitos estão sob o esquema dos chamados "contratos de zero hora": recebem por hora, ou diária, sem qualquer vínculo empregatício. A pandemia não deve mudar a realidade dessas pessoas.

Condições de trabalho precárias

Sem ter com quem deixar as duas filhas pequenas, Harriet S. fazia as entregas da Amazon, no condado de Buckinghamshire, à oeste de Londres, na sua van vermelha, com a ajuda das meninas, uma de seis e a outra de oito anos. Foi a maneira que encontrou de continuar trabalhando, enquanto as escolas ainda estavam fechadas. Se não fosse assim, não ganhava. Esse até foi um setor que empregou mais na crise. Milhares de postos foram abertos nos últimos quatro meses. Mas as condições de trabalho são mais precárias.

Segundo o especialista do Instituto de Pesquisas do Trabalho da Universidade de Warwick, Jeisson Cardenas Rubio, estes trabalhadores já ganhavam menos do que os não-essenciais, ou aqueles que puderam ficar em casa, esperando a pandemia passar. À RFI, Rubio afirma que a média dos salários dos trabalhadores essenciais já era 10% inferior a do restante. E a diferença, que aumentou nos últimos dez anos, deve continuar crescendo daqui para frente.

O professor afirma que a situação deve prejudicar sobretudo as mulheres. No Reino Unido, segundo ele, 60% da força de trabalho feminina está atrelada aos setores essenciais, contra 43% da masculina. Os trabalhadores essenciais também têm majoritariamente menos escolaridade do que os outros. As perspectivas, admite, não são boas.

"Portanto, no novo cenário, terão três opções: ficam desempregados, aceitam as condições piores e salários mais baixos, ou vão para o setor informal", disse Rubio.

Perspectivas de valorização

Se passaram a ser enxergados pela sociedade pela força da crise, esses profissionais essenciais, ou chave, como são conhecidos entre os britânicos, não devem ser valorizados como gostariam no novo normal.

Estudos da academia mostram que o segmento dos trabalhadores essenciais deve estar justamente entre os mais punidos pelos efeitos da crise econômica, que já começou, e que varrerá o mundo no pós-pandemia. São menos equipados para exigir melhores condições no novo normal. Por mais que se reconheçam suas qualidades ? e os riscos a que estão expostos continuamente ? não haverá margem para aumentar os seus salários.

Em um primeiro momento, os países que puderam abriram os cofres públicos para tentar conter nos efeitos do novo coronavírus sobre a economia. No Reino Unido, o governo está pagando 80% dos salários dos empregados que estão sem trabalhar. Passado o pior,  contudo, o cobertor ficará ainda mais curto do que já era antes da crise. Os governos terão de administrar dívidas públicas cada vez maiores. As empresas também devem enfrentar uma realidade mais restritiva. Muitas agonizam desde já. Nesta quinta-feira, a rede de farmácias Boots anunciou a demissão de quatro mil funcionários.

Crise maior em países em desenvolvimento

Esse cenário deve se complicar ainda mais nos países em desenvolvimento, sobretudo na América Latina, uma de suas áreas de expertise, onde afirma que as taxas de desemprego dispararam. Na Colômbia, onde nasceu, o universo de desempregados passou para 24% da população. Nesses países, segundo ele, existem dificuldades adicionais às observadas nas nações desenvolvidas. Além de os governos não terem margem para complementar a renda dos cidadãos, é difícil encontrá-los, pois boa parte deles está na informalidade e as estatísticas oficiais têm problemas para captá-los.

"Na Colômbia, essas pessoas são conhecidas por censos, o que não pode ser feito agora. Os dados estão defasados. Há ainda a questões da corrupção nos países latino-americanos", afirma.

Para ele, a situação é tão diferente daquela dos países ricos que evitar dividir a população entre trabalhadores essenciais e não-essenciais. Prefere separá-los entre aqueles que podem e os que não podem trabalhar de casa. "Uma pessoa que tem um carro para fazer transporte não necessariamente é considerado essencial. Mas ele não pode parar de trabalhar, se quiser sustentar a família", destaca.

 

Desemprego pode atingir quase 100 milhões 

Estudo do Fundo Monetário Internacional afirma que 97,3 milhões de trabalhadores, o que equivale a 15% da força de trabalho nas 35 nações desenvolvidas e em desenvolvimento que analisou, correm o risco de perder o emprego, o que o deve ampliar ainda mais as desigualdades na sociedade.

E mais: a pandemia deve ameaçar os ganhos obtidos pelas campanhas de igualdade de gênero nas últimas décadas. Isso porque os setores de alimentação e hospitalidade contam com um percentual importante de mão-de-obra feminina. Além disso, diz o documento assinado por Mariya Brussevich, Era Dabla-Norris e Salma Khalid, recai sobre as mulheres o ônus da dupla jornada.

As desigualdades também devem crescer entre os trabalhadores mais jovens, e aqueles sem diploma universitário, que são os que menos têm condições de trabalhar de casa. Essas pessoas, e funcionários que trabalham meio período, ou em pequenas e médias empresas, correm mais riscos de perder o emprego.

O FMI também destaca as diferenças entre os países. "É muito mais fácil fazer teletrabalho na Noruega ou em Cingapura, do que na Turquia, Chile, México, Equador ou Peru, simplesmente porque mais da metade dos lares na maioria dos países emergentes e em desenvolvimento não tem sequer computador em casa", diz o documento.

No setor de saúde, espera-se que os estados mundo afora devam investir mais. Será uma demanda das sociedades, segundo Rubio. O orçamento encolheu na última década, que foi marcada pela austeridade, sobretudo depois da crise fincaria global de de 2008. Mas isso tampouco deve se converter em melhores salários no curto e médio prazo.

De acordo com a Escola Real de Enfermagem no Reino Unido, por exemplo, a média salarial de um enfermeiro caiu cerca de 8% em termos reais (ou seja, já descontados os efeitos da inflação) desde que o partido conservador chegou ao poder em 2010. Nos últimos anos, a bandeira do governo foi a austeridade fiscal.

Para os profissionais da área, há muito o que se discutir daqui para frente. Não apenas no que diz respeito a salários. Mas existe um déficit de trabalhadores neste segmento.

Cerca de 30% da mão-de-obra do NHS é de imigrantes de dentro e fora da Europa. As vagas terão de ser preenchidas para reduzir os gargalos de um setor que já vinha funcionando no osso desde antes da pandemia. Eles apreciaram as palmas da população nos últimos meses, mas já deixaram claro que vão querer bem mais do que isso no futuro.