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Evolução das lives musicais no pós-pandemia é incógnita de "um milhão de dólares"

15/07/2020 14h33

O fenômeno das lives musicais foi uma das boas (e poucas) surpresas da crise sanitária provocada pela pandemia de coronavírius. Desde o início da quarentena, artistas do mundo inteiro começaram a propor, isolados em suas casas, shows ao vivo e gratuitos na internet que tiveram sucesso imediato. Mas com a flexibilização da quarentena, surge a pergunta: qual é o futuro do formato no pós-pandemia? As lives gratuitas, disponíveis no mundo inteiro, vieram para ficar? A RFI conversou com músicos, empresários, produtores e programadores.

Sem poder subir em um palco com o fechamento dos teatros imposto pela quarentena, a classe artística foi uma das mais impactadas, mas soube se adaptar e, como diz a música de Milton Nascimento, "ir aonde o povo está". Além de manter o contato com o público, os shows ao vivo na internet foram também a maneira dos músicos apoiarem o movimento #ficaemcasa. A oferta cotidiana passou a ser tão variada que a programação é divulgada todos os dias pelos jornais.

As lives evoluíram durante a crise sanitária. No início, eram intimistas, com o músico sozinho em casa, tocando e cantando. Com o tempo, grandes produções foram montadas, com vários músicos tocando juntos, em casa ou em teatros vazios. O formato agrega um público muito mais amplo, com alguns vídeos sendo visionados por mais de um milhão de pessoas. Mas as grandes lives, como a realizada por Gilberto Gil, em 26 de junho, só são possíveis graças ao patrocínio de grandes marcas. Elas são produzidas também para arrecadar doações para os profissionais do setor musical que, na falta de uma política pública de apoio, ficaram sem recursos com o cancelamento dos espetáculos presenciais.

Em entrevista recente à RFI, Gil explicou o surgimento das lives. "Tudo levou os artistas a buscar guarida na sua condição de recolhimento. Daí o papel importantíssimo que essas novas tecnologias passaram a ter, propiciando aos artistas que se encontrem à distância, que se dediquem a colocar para os seus públicos em sua própria intimidade, fazendo suas próprias gravações musicais, em casa, etc. (...) Essa forma remota de exposição vai deixar resíduos depois da pandemia. Eles devem permanecer (atuando) nesse modo", acredita o músico baiano.

Modelo econômico

A questão do financiamento é central. Aos poucos, o público começa a poder voltar aos teatros, principalmente em países onde a epidemia está sob controle. Com a flexibilização da quarentena, as casas de show reabrem, mas ainda com protocolos sanitários rígidos e com número reduzido de espectadores. Como fica o formato das lives com a reabertura das salas de espetáculo? As transmissões ao vivo dos concertos dos artistas no palco e com público na plateia serão mantidas na internet? Haverá coabitação entre os dois formatos ou a live irá evoluir para um outro modelo? O público vai continuar aderindo à difusão pela internet, sabendo que poderia estar assistindo pessoalmente ao espetáculo, envolto na magia da acústica e do calor humano?

O músico Lô Borges, fundador do movimento mineiro Clube da Esquina, calcula que a volta ao novo normal ainda vai demorar. Ele ressalta que quem financia a política cultural no Brasil é o público que paga ingresso e pensa que o patrocínio privado é fundamental. "Até descobrir uma vacina, vai demorar muito ainda porque os teatros vão ter lotação para 30% das plateias, os artistas não vão poder lotar teatro, ganhar dinheiro. Vai ser uma coisa diferente, vai ter que ter muito patrocínio, vai ter que contar com iniciativa privada (...) para ser viável, pagar os técnicos, os músicos, os artistas, o produtor. Para dar certo, tem que ter pessoas interessadas em divulgar a cultura, patrocinar a cultura. Quem patrocina a cultura historicamente no Brasil é o público que lota os teatros para ver os artistas. Mas sem o público, quem vai ter que entrar nessa são as entidades", salienta Lô Borges.

O empresário do grupo Skank, Fernando Furtado, que produziu lives do grupo mineiro inclusive no estádio do Mineirão vazio, acha que o formato atual dos shows ao vivo na internet tende a desaparecer. "As lives, no formato de hoje, em canais abertos e com patrocínio, perderão força com a volta dos shows. Talvez o formato de transmissão se adapte aos eventos corporativos. Mas acredito que grande parte dos artistas não queira seguir esse caminho », avalia Furtado.

Reinvenção e coabitação

A Yellow Noises é uma das maiores produtoras de shows brasileiros na Europa. Ela já produziu no velho continente Criolo, Martinho da Vila, Milton Nascimento, Nando Reis, Roberto Carlos, Zeca Pagodinho. 2020 prometia, com uma programação de primeira que incluía Gal Costa e Paulinho da Viola. Mas a pandemia cancelou tudo e todos os shows foram adiados para o ano que vem. A produtora não pôde contar nem com as lives para manter o contato com o público.

Rodrigo da Matta, fundador e diretor da Yellow Noises que mora em Berlim, diz que o setor de eventos está tendo que se reinventar e não teme, na retomada dos shows presenciais, a concorrência da internet: "a coabitação é o que mais faz sentido no momento. As lives mostraram o potencial ainda a ser explorado, é um embrião de um processo muito longo que esta por vir. Para o futuro, os eventos vão ter mais componentes on-line. Fico pensando que, para o ano que vem, esses artistas brasileiros que estão vindo para cá podem gerar algum conteúdo on-line com o qual a gente possa alimentar nosso público (no Brasil). Tem a coisa de fortalecer as redes."

Apesar de ter consciência de que a presença on-line está cada vez mais importante e não pode ser esquecida, o produtor brasileiro ainda tem dúvidas sobre o valor real das lives: "o nosso mercado se alimenta de encanto também e encantar pela internet é uma coisa que ainda não está me encaixando muito bem. Ainda não consegui chegar nessa linha de raciocínio e ver o real valor".

Uma das pistas seria vender ingressos também on-line, mais baratos claro, que permitiriam a um público que mora longe assistir ao show pela internet. Esses internautas receberiam uma senha que daria acesso ao conteúdo ao vivo ou por streaming. "Se você passa um conteúdo pago gratuitamente depois, esse conteúdo deixa de ser exclusivo. O mercado tem que lutar por essa exclusividade", ressalta.

Tudo é ainda muito novo. Rodrigo da Matta sabe que as plataformas estão refletindo para tentar monetizar os conteúdos, mas ainda há muita indefinição. "O momento agora é a gente entender como trazer essa magia para quem não estiver ali, quem estiver no Brasil, em outros países, quem não pode pagar pelo ingresso, participar daquele momento de forma inclusiva, como fazer? Pergunta de um milhão de dólares", brinca.

Música clássica

A Philharmonie de Paris (Filarmônica de Paris), uma instituição pública e uma das casas de espetáculos mais importantes da França, não esperou a pandemia para propor lives ou streamings de seus concertos na internet. Há mais de dez anos, ela faz a captação de seus espetáculos, principalmente de música clássica, mas também de outros gêneros musicais, e difunde ao vivo e gratuitamente cerca de 60 concertos por ano, em parceria com televisões públicas francesas (Arte, France TV).

Por isso, a Philharmonie pôde, assim que a quarentena foi decretada na França, propor cotidianamente aos internautas do mundo inteiro a redifusão de um concerto de seu imenso arquivo, durante os mais de dois meses de isolamento. As lives tiveram que esperar a flexibilização das medidas restritivas para serem realizadas. A instituição foi a primeira da França a fazer um concerto a distância, com a orquestra em cena, mas sem público na sala, em 27 de maio. A audiência "foi excepcional para a música clássica", festeja Hugues Saint-Simon, secretário-geral da Philharmonie. Cerca de 80.000 internautas acompanharam o concerto, sabendo que a capacidade da sala é de 2.400 lugares.

A Philharmonie teve prejuízos de milhões de euros com a crise e precisa da volta do público para reequilibrar as finanças. Por enquanto, a internet não é uma opção financeira. "Uma instituição pública como a nossa deveria criar uma estrutura pesada para negociar os direitos com os artistas. Pensamos que as receitas que obteríamos têm poucas chances de serem beneficiárias. Estamos discutindo com as plataformas, que nos procuraram, para um dia passar à captação paga, mas por enquanto, o mercado na França não está maduro", analisa Saint-Simon.

Ganha o público que não tem a oportunidade de ir a Philharmonie e vai continuar tendo acesso gratuito a lives de vários concertos da casa, mesmo se assistir a um show pela internet "nunca vai ser igual. A gente tem que batalhar para que não seja igual e que as pessoas tenham consciência que é uma coisa diferente", pontua Rodrigo da Matta.