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Caso Depakine: laboratório Sanofi é indiciado na França por "homicídio culposo"

03/08/2020 10h49

Um novo capítulo do escândalo ligado ao medicamento Depakine, produzido pelo grupo farmacêutico Sanofi Aventis France, ocupa as páginas do diário Le Monde. O laboratório, já processado desde fevereiro por "lesões não intencionais" e "engano agravado", foi indiciado por "homicídio culposo", em 20 de julho, o que foi descoberto pelo jornal francês neste fim de semana. Novas queixas e um maior conhecimento judicial sobre a droga levaram os juízes investigadores a ordenar essa acusação suplementar.

A informação legal agora visa determinar se o laboratório francês pode ser responsabilizado pela morte, em 1990, 1996, 2011 e 2014, de quatro bebês com idades de apenas algumas semanas ou meses. As mães dessas quatro crianças, durante a gravidez, tomaram Depakine - um medicamento antiepilético comercializado desde 1967 e cujo efeito no feto causa más formações e distúrbios do desenvolvimento neurológico, como autismo e comprometimento do QI.

No documento ao qual o Le Monde teve acesso, os juízes investigadores afirmam ser "inegável que a ligação entre a utilização [de Depakine] e os danos observados em vítimas muito jovens é cientificamente estabelecida". Suspeita-se que a Sanofi tenha falhado "ao não apreciar completamente o conhecimento da toxicidade do medicamento para o embrião", um risco tóxico documentado desde os anos 1980.

Com isso, o laboratório é criticado por ter "continuado a comercializar" o medicamento, apesar dos riscos conhecidos para os pacientes, "informando as autoridades competentes tardiamente e de maneira incompleta" sobre esses riscos. O documento também sublinha que a Sanofi "forneceu tarde, incompletas, de maneira aproximativa e excessivamente tranquila aos consumidores as informações que lhes permitiam avaliar os riscos e se protegerem contra eles quando esses riscos não foram imediata ou completamente perceptíveis sem um aviso adequado".

"As informações a quem prescreve e aos pacientes foram limitadas ao mínimo estrito por 30 anos (1986-2016)", escrevem em seu relatório os três juristas, afirmando que não há nada que indique que a Sanofi era "proativa", tanto no nível de pesquisa quanto no de comunicação. Pelo contrário, a empresa procurou conter potenciais "riscos comerciais", diz a reportagem.

No cumprimento de suas obrigações

Contatada pelo Le Monde, a Sanofi indica que "contesta a acusação" e destaca que o episódio "não prejudica em nada a responsabilidade do laboratório", que "cumpriu suas obrigações de informações e contesta o mérito dos processos".

O jornal cita ainda a declaração de Marine Martin, presidente e fundadora da Apesac, uma associação de assistência a mães e pais de crianças que sofrem da síndrome anticonvulsivante, que representa milhares de vítimas: "Esta acusação de homicídio era esperada, é capital, porque o Depakine mata e não se diz nada".

De acordo com dois relatórios da Agência Nacional de Segurança de Medicamentos, datados de 2018, entre 16.600 e 30.400 crianças sofreram de distúrbios do desenvolvimento neurológico entre 1967 e 2016, ano da abertura das ações judiciais. Entre elas, pelo menos de 2.150 a 4.100 casos apresentam alguma má formação congênita grave.

Os processos criminais por lesões e homicídio culposo - juntamente com centenas de outros processos civis e extrajudiciais - envolvem 79 pessoas. Quarenta reclamações serão adicionadas "nos próximos meses", assegura Marine Martin, que "incentiva as famílias que possam ir ao final deste procedimento porque, psicologicamente, é importante que exista uma condenação criminal".

Garantias financeiras

Ponto de destaque diante da "gravidade muito excepcional dos fatos", os juízes investigadores anexaram à acusação importantes garantias financeiras: a Sanofi deve, portanto, pagar uma "caução de € 8 milhões" a partir de agora, e obter uma "garantia bancária à primeira demanda no valor de € 80 milhões": se o laboratório for condenado ao final de um possível julgamento criminal - não antes de 2023 -, o banco que ele tiver escolhido será obrigado a liberar os fundos dentro de 15 dias.

Esta decisão deve "garantir o pagamento das multas e a reparação dos danos". Quantias muito grandes, potencialmente: "A natureza das más formações e as consequências para a vida cotidiana dos outros distúrbios [causados ??por Depakine] em crianças pequenas estão claramente subjacentes à alta compensação de volume", antecipam os juízes, que apontam para a atitude do laboratório: "Não há evidências para confirmar a ação da [Sanofi] de se engajar em um processo conjunto de compensação voluntária".

"Em todos os procedimentos, e diferentemente dos laboratórios Servier, no caso Mediator, a Sanofi sempre se recusou a pagar", diz Marine Martin, que diz estar "satisfeita" com a quantidade "extremamente alta" das somas reivindicadas: "Esta é uma forte mensagem simbólica enviada pelos juízes. Isso permitirá que as vítimas sejam compensadas rapidamente".

Guerrilha judicial

"Lamento a guerrilha judicial em que a Sanofi embarcou", explica Charles Joseph-Oudin, advogado da Apesac. "Convidamos oficialmente o laboratório a se juntar à mesa de negociações para encontrar, com as outras partes, uma solução para garantir rapidamente uma compensação justa às vítimas. A Sanofi deve assumir sua parcela da responsabilidade."

"O próximo passo processual", anuncia Joseph-Oudin, "deve ser a acusação da ANSM por ferimentos e homicídio culposo". Esta autoridade pública responsável por garantir a segurança dos medicamentos é destacada pelo trio de especialistas jurídicos. "Acreditamos que toda a cadeia de informações sobre segurança de medicamentos falhou amplamente em sua missão principal, que consistia em impedir a exposição dos filhos de gestantes e informá-los dos riscos envolvidos. (...) Nem as autoridades sanitárias, nem o [laboratório], se beneficiaram da impressionante acumulação de dados [sobre a toxicidade de Depakine]."

A responsabilidade do Estado está envolvida no assunto. No início de julho, o tribunal administrativo de Montreuil (Seine-Saint-Denis) considerou que este, culpado de uma "deficiência" de controle e informação em saúde, "havia falhado em suas obrigações de gestão por não tomar as medidas apropriadas". Três famílias foram compensadas no valor de € 290.000, € 200.000 e € 20.00, dependendo da data de nascimento das crianças expostas no útero ao Depakine, e que hoje apresentam deficiências.