Topo

Sem representação diplomática no país, brasileiros detidos em prisões da Venezuela pedem ajuda para Brasília

20/08/2020 14h50

O encerramento das atividades diplomáticas do Brasil na Venezuela em março deste ano deixou sem apoio jurídico e consular, dezenas de brasileiros que estão em prisões e delegacias no país comandado por Nicolás Maduro. Alguns estão prestes a cumprir a pena e, sem representação, o caso deles tende a acabar no esquecimento dentro de um dos piores sistemas carcerários do continente. Nestes lugares, onde as regras são impostas por um "pran", o dono da cadeia, violentas rebeliões terminam com vários mortos e não é rara a falta de comida e até atos de canibalismo.

Elianah Jorge, correspondente da RFI em Caracas

Carolina Girón, diretora do Observatório Venezuelano de Prisões (OVP), explica que a capacidade do sistema penitenciário local é de 26.238 presos. No entanto, até ano passado cerca de 44 mil detentos, entre homens e mulheres, lotavam as prisões e calabouços - como são chamadas as delegacias do país.

Segundo ela, até 2019 eram cerca de 958 presos estrangeiros. "Deste número, 95 são mulheres. Isso em centros penitenciários. Não sabemos quantos estão presos em calabouços", explica Girón.

Em março deste ano aconteceu as atividades diplomáticas brasileiras em terras bolivarianas foram encerradas, deixando sem apoio todos os brasileiros que estão no país, entre eles os presos.

A reportagem da RFI Brasil entrou em contato com o Itamaraty para saber o número exato de brasileiros detidos na Venezuela, mas até o fechamento da reportagem não recebeu resposta.

Mas de acordo com um ex-funcionário de um dos vice-consulados do Brasil na Venezuela, e preferiu não se identificar, seriam "25 brasileiros presos em toda o país. Um deles estava com tuberculose; outro foi baleado na mão e esperava pela cirurgia". Outra uma fonte, que trabalhou no consulado na capital venezuelana, conta que "em Caracas ficaram cerca de 15 presos, quase todos por tráfico de drogas, dos quais 13 já foram condenados e dois estão à espera de julgamento".

Faltam dados oficiais

"A nacionalidade dos presos aqui no país é um mistério. O Ministério de Serviço Penitenciário não dá esta informação", reitera Carolina. A reportagem da RFI Brasil pediu detalhes ao Ministério da Comunicação da Venezuela sobre a situação carcerária dos brasileiros no país, mas não obteve reposta.  

É nas cidades venezuelanas perto das fronteiras com o Brasil que acontecem o maior número de prisões. Os detidos nessas regiões são levados para postos da Guarda Nacional, do Corpo de Investigações Científicas Penais e Criminalísticas (CICPC) ou do Serviço de Inteligência Bolivariana (SEBIN).

Quando um estrangeiro é preso na Venezuela, a Justiça local entra em contato com a representação diplomática do país da nacionalidade do detido. Após março deste ano, quando foram retirados os funcionários da Embaixada e consulados, os presos brasileiros entraram em um limbo. "Vários familiares de brasileiros presos se comunicaram com o OVP, mas não foi possível apoiar a situação deles porque não há delegação brasileira na Venezuela", explica Carolina.

Presa durante a quarentena

Após chegar a Santa Elena de Uairén, no sul da Venezuela, a convite de um homem que conheceu na internet, a brasileira R.A.A. foi presa pelas autoridades venezuelanas por não ter o "salvoconducto", documento que permite a circulação durante a quarentena imposta pelo presidente Nicolás Maduro, em março deste ano.

Sem ter a quem recorrer, a irmã dela, que preferiu não se identificar, procurou uma ONG local para tentar ajudar esta brasileira de 50 anos que, segundo ela, "está completamente abandonada".

A irmã tentou contato com as autoridades brasileiras, mas "o whatsapp informado pelo Itamaraty não funciona". Em outra ocasião, recebeu a orientação do Itamaraty para procurar a polícia federal. "Mas como, se este organismo não trabalha no país estrangeiro?", se questiona.

Estabelecer contato com a irmã é outra dificuldade. "Tiraram o celular dela. Quando o familiar de outro preso vai lá, ela consegue mandar mensagem pra gente".

Segundo os familiares, a brasileira foi enquadrada nos crimes de tráfico de pessoas, falta de documentação ("salvoconducto") e desacato à autoridade.  

A irmã da detenta conta que recebeu propostas de ajuda. Porém "tentaram nos extorquir. Um advogado pediu R$ 300 mil pela causa dela. Não temos este dinheiro".

Isolado pela Covid-19     

Através do celular, um brasileiro que está em uma prisão venezuelana conversou com a RFI Brasil. O homem, que pediu para ser identificado como L., ficou sete dias em isolamento por suspeita de estar com Covid-19.

"Comecei a me sentir mal. Disseram que é esta "virose". Trouxeram eu e mais 12 presos para o isolamento. Fiz dois testes. Um deu negativo. Aguardo o resultado do último para poder voltar para a minha cela".

A página do Ministério venezuelano para Assuntos Penitenciários informa que até junho deste ano foram feitos dois mil testes para identificar casos da Covid-19 nas prisões de todo o país. 

Preso por tráfico de drogas, faltam quatro anos para L. cumprir a pena, mas "às vezes dão três anos de redenção. Em agosto de 2021 eu poderia sair daqui. Apelo para que venha um advogado me ajudar, para ir ao tribunal buscar meu documento e fazer a contagem de quanto tempo estou preso".

Originário de Boa Vista, ele quer ser enviado ao Brasil para cumprir pena lá. "Antes, éramos oito brasileiros aqui. Eles já foram embora e agora só eu fiquei".

Este homem de 48 anos e "de família pobre" conta que "a advogada veio aqui duas vezes com o consulado, mas desde dezembro passado não recebo visita".

L. faz referência à SilviaFernández, a advogada que trabalhou para a diplomacia brasileira na Venezuela. Entre outubro e dezembro de 2019, ela conseguiu a liberação de oito brasileiros que estavam detidos. A advogada explica que "na Venezuela, os processos não avançam se alguém não estiver em cima".

Os protocolos envolvendo um detento estrangeiro abrangem visitas ao juiz, mas também ao procurador, à chancelaria, ao Ministério de Assuntos Penitenciários e ao serviço de estrangeria. Sem esses procedimentos "o caso pode acabar esquecido".

Mulheres brasileiras na prisão

Na Venezuela existem três prisões para mulheres. Uma delas é o Instituto Nacional de Orientação Feminina (INOF), que abriga 677 internas. Porém, a capacidade do lugar é para 350 pessoas. Lá está uma brasileira, de 30 anos, que começa a cumprir pena de pelo menos 10 anos de prisão. Fernández explica que esta detenta "está desprotegida, precisa de ajuda e não tem familiares aqui".

Situação similar vive outra brasileira presidiária. Detida por tráfico de drogas, ela cumpre pena no Presídio de San Antonio, na Ilha de Margarita. Lá funciona um dos 17 anexos femininos dentro de prisões, originalmente construídas para abrigar homens.

A comida

Segundo o (OVP), em 2019 pelo menos 66 detentos morreram de desnutrição. Em junho deste ano um homem de nacionalidade britânica e uma colombiana morreram por falta de comida em centros de detenção na Venezuela. 

Embora o Estado seja responsável pelo fornecimento da alimentação nos presídios, nem sempre a comida chega aos presos. Já nas delegacias, onde a permanência do detento seria provisória, não há orçamento para a comida. São os familiares do preso que levam a refeição. "Se há um estrangeiro sem família para dar comida, ele depende dos outros presos para se alimentar", explica Girón.

Quem não pode bancar a própria comida, fica ainda mais vulnerável e acaba devendo favores a outros presos. Não é raro que o pagamento seja com sexo.

O goiano L.S. conta que "passou muita fome nas prisões venezuelanas", onde cumpriu mais de dez anos de prisão. "Em uma das vezes houve uma greve de fome e o dono da prisão circulava com mais uns 70 homens armados vendo quem estava comendo. Quem comesse seria morto. Preferi ficar com fome. A primeira greve durou 17 dias e a outra, 26 dias".

Controle do "pranato"

Nas cadeias venezuelanas é comum a figura do "pran" (sigla em espanhol para a expressão Presidiário Consumado Assassino Nato). A Guarda Nacional custodia apenas a entrada da prisão. Da porta para dentro é ele quem manda e impõe as leis.

"Todos os sábados e domingos era preciso pagar ao pran. Quem não tinha dinheiro, sofria", conta L.S. sobre sua experiência na prisão de El Dorado, no estado Bolívar, considerada a pior do país.

O goiano relata que o pior é ter que lidar com os prans. "Eles mandam. Como eu não tinha dinheiro, passei 10 dias apanhando forte. Também levei seis tiros na região das pernas".

A figura do "pran" surgiu em 2011, ano sangrento nas prisões venezuelanas. Para reduzir a violência, o governo do então presidente Hugo Chávez (1999-2013) autorizou que familiares dos presos ficassem dentro das prisões desde quinta-feira à noite até segunda-feira de manhã, inclusive durante feriados prolongados.

A violência caiu, mas surgiram os "prans", os líderes. Eles chegam a ganhar até US$ 1 milhão por ano orquestrando, de dentro da cadeia, sequestros e extorsões que são cometidos do lado de fora.

Dentro das prisões venezuelanas os líderes possuem armas de fogo de grosso calibre e até granadas.

Canibalismo

Em 2019, após um mês de rebelião, um detento foi assassinado em uma prisão no estado Táchira. Partes de seu corpo acabaram entregues a outros presos, que foram obrigados pelos líderes da prisão a cometer canibalismo. A ação foi filmada e divulgadas nas redes sociais. "Só quem passou por lá sabe o que é preciso para sobreviver em uma cadeia na Venezuela", conta L.S.

Mesmo já estando no Brasil e em liberdade, o goiano se solidariza com os detentos brasileiros que ainda estão na Venezuela.

"Faço um apelo ao presidente Jair Bolsonaro para que tenha um pouco mais de humanidade. Que Deus o toque no coração para que ele olhe para os brasileiros que estão sofrendo em um país estrangeiro. Pagamos por um crime, mas também somos seres humanos".