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Ex-braço direito de Carlos Ghosn declara inocência em julgamento sobre fraude financeira no Japão

15/09/2020 09h42

O americano Greg Kelly, ex-colaborador de Carlos Ghosn na Nissan, acusado como ele de fraude financeira, declarou-se inocente nesta terça-feira (15) durante a abertura de seu julgamento em Tóquio. "Acredito que os elementos provarão que não violei as regras da Bolsa japonesa", declarou Kelly no início da audiência, que coincide com seu aniversário de 64 anos. Ele chegou ao tribunal acompanhado de três advogados, usando uma máscara de proteção contra a Covid-19.

O ex-CEO do grupo Renault, Nissan, Mitsubishi, o franco-líbano-brasileiro Carlos Ghosn, não participa do processo, depois de ter fugido em dezembro do ano passado de seu apartamento na capital japonesa, onde cumpria prisão domiciliar, para Beirute, no Líbano. O julgamento deve ter duração de dez meses e acontece quase dois anos depois da detenção de Kelly no Japão, que ocorreu no mesmo dia da prisão de Ghosn.

Depois da fuga rocambolesca do ex-CEO do grupo automobilístico, Kelly tornou-se o principal réu do processo, ao lado da Nissan, investigada como pessoa jurídica. Um representante da empresa confirmou nesta terça-feira que a Nissan vai se declarar culpada.

Greg Kelly e a Nissan foram acusados de omitir, de forma ilegal e intencional, nos relatórios anuais enviados pela montadora à Bolsa de Valores de Tóquio referentes ao período de 2010 a 2018, uma remuneração total de 9,2 bilhões de ienes (cerca de US$ 87 milhões) que Ghosn deveria receber mais tarde. Porém, o americano foi enfático no tribunal. "Nego as acusações. Não participei de uma conspiração criminosa", afirmou Kelly.

O americano admitiu que trabalhou com outras pessoas, tanto interna como externamente, sobre uma forma "legal" de dar uma remuneração maior a Ghosn a partir de 2010, para dissuadi-lo de procurar outra empresa na qual receberia um salário maior. Na ocasião, a Nissan tinha o interesse de manter o "executivo extraordinário que salvou o grupo da falência e que protegia ferozmente sua independência em relação à Renault", insistiu Kelly.

No início de 2020, em sua primeira aparição pública em Beirute após a fuga do Japão, Ghosn reafirmou que foi vítima de um "golpe orquestrado" por alguns diretores da Nissan que desejavam derrubá-lo, para evitar que transformasse a aliança Renault-Nissan-Mitsubishi em algo "irreversível", embora isto não significasse a fusão das empresas.

Mulher diz que ausência de Ghosn é decepcionante

A mulher de Kelly, Donna, afirmou nesta terça-feira que a ausência de Ghosn no julgamento é "decepcionante" porque ele poderia ter prestado depoimento a favor de seu marido. "Ghosn terá que assumir as consequências da escolha que fez ao fugir para o Líbano", declarou à imprensa.

Kelly foi liberado após o pagamento de fiança no Natal de 2018, depois de passar mais de um mês em prisão provisória, em total isolamento. Ele foi proibido de abandonar o Japão, à espera do julgamento. Ele pode ser condenado a até dez anos de prisão.

Os advogados de defesa nutrem a esperança de uma absolvição, apesar da taxa de condenação extremamente elevada (mais de 99%) nos casos penais no Japão.

A Nissan e a Promotoria afirmam que têm provas suficientes de que Ghosn tinha os pagamentos futuros assegurados e que, portanto, deveriam ter sido declarados nos relatórios da montadora, como estabelece a norma da Bolsa japonesa.

Os investigadores reuniram uma quantidade gigantesca de documentos no caso, mas a defesa de Kelly denunciou que teve acesso apenas a uma parte das peças do processo.

Testemunhas temem armadilhas da justiça japonesa

Outra desvantagem de peso para o americano é a ausência de testemunhas estrangeiras no julgamento. Elas poderiam ser muito úteis para Kelly, mas não confiam no sistema judicial japonês, pois temem cair em uma armadilha e serem detidas ao desembarcar no Japão - como aconteceu com Kelly, lamentou recentemente um de seus advogados, James Wareham. "Eles têm medo. Não virão ao Japão para testemunhar", comentou. A Promotoria e o tribunal rejeitaram o pedido da defesa para que as testemunhas fossem ouvidas por videoconferência.

No fim de 2019, a Nissan aceitou pagar uma multa de 2,4 bilhões de ienes (quase US$ 22 milhões) à Agência Japonesa de Serviços Financeiros (FSA) por ter omitido os pagamentos de Ghosn. A empresa também aceitou pagar US$ 15 milhões nos Estados Unidos, em um acordo amistoso com as autoridades americanas sobre o mesmo caso.

Ghosn, que como Kelly defende sua inocência, aceitou pagar US$ 1 milhão às autoridades americanas para evitar um processo nos Estados Unidos. Kelly pagou uma multa de US$ 100 mil.

Kelly deve ter revisto inúmeras vezes em sua cabeça o filme dos momentos que antecederam sua detenção em Tóquio. Em novembro de 2018, ele se encontrava em Nashville, no Tennessee, aguardando uma cirurgia, mas acabou cedendo à insistência de Hari Nada, então vice-presidente sênior da Nissan, no cargo de Ghosn, para que participasse, em carne e osso, do conselho de administração da Nissan em Yokohama, o que ele costumava fazer por videoconferência.

Se Kelly não tivesse embarcado no jato executivo que foi colocado à sua disposição para chegar de forma mais rápida e confortável à capital japonesa, ele não teria sido preso em 19 de novembro daquele ano. Mas o americano não tinha ideia do risco que estava correndo. Ele foi surpreendido por policiais em uma área de descanso de uma rodovia, a caminho de Yokohama, duas horas depois que seu avião pousou em Narita.

O ex-braço direito de Ghosn ingressou na filial da Nissan nos Estados Unidos em 1988, após trabalhar como advogado, e gradualmente subiu na hierarquia até se tornar um membro da direção do grupo em 2008, responsável por organizar as tarefas do presidente. Em 2012, ele ingressou no conselho de administração. 

Há mais de um ano e meio, Kelly mora em um pequeno apartamento alugado perto do Palácio Imperial de Tóquio, junto com sua mulher, sob estrita vigilância judicial. O casal vive distante de seus dois filhos e netos, que moram nos Estados Unidos.

(Com informações da AFP)