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Falta de status jurídico internacional fragiliza situação de refugiados climáticos

25/09/2020 13h10

E se você precisasse abandonar sua casa? A cada dia, milhares de pessoas no mundo deixam para trás toda a história que construíram por causa de tragédias desencadeadas pelo clima. A previsão é que as inundações, ondas de calor, secas e incêndios florestais se intensifiquem provocando ainda mais catástrofes ambientais, mais migração em massa. Os refugiados climáticos não são um risco que pode acontecer em um futuro distante, eles já são uma realidade presente hoje.

Letícia Fonseca-Sourander, de Bruxelas

Em 2020, cerca de 50 milhões de pessoas serão obrigadas a se deslocar por causa de conflitos e degradação do meio ambiente, segundo estimativa da Organização Internacional para Migrações da ONU.

Na Europa, a Espanha é o país com maior número de deslocamentos internos por desastres ambientais. O ano ainda nem acabou mas os espanhóis já viveram situações extremas com nevascas e incêndios devastadores.

Em fevereiro, a passagem de Glória, a pior tempestade em décadas, provocou ventos de até 144 km/h e ondas gigantes. A região da Catalunha foi particularmente afetada. Plantações de arroz devastadas, 300 mil pessoas sem eletricidade e quase 3 mil quilômetros de estradas bloqueadas pela neve.

No verão, mais de 12 mil hectares foram destruídos pelo fogo na província de Huelva, na Andaluzia, pelo menos 3.200 pessoas foram retiradas de casa. Muitos incêndios são provocados por ação humana.

Enquanto uns destroem, outros fazem florescer

Enquanto uns destroem, outros fazem florescer. É o caso de Rodrigo Ibarrondo, fundador do Reforest-Acción e da Red Ibérica de Guardianes del Bosque, ações coletivas para recuperação de florestas com espécies nativas, ambas na Espanha.

Depois de trabalhar em vários projetos ambientais pelo mundo, Rodrigo decidiu viver em Sierra de Gata, na Extremadura espanhola. Logo após sua chegada, em 2015, um incêndio de proporções gigantescas destruiu 8.600 mil hectares da região, coberta basicamente de pinheiros. Foi assim que nasceu a idéia de reflorestar a terra queimada.

Muitas vezes o que explica a magnitude do fogo é a presença de monoculturas. As florestas autóctones em Portugal, na Espanha, assim como no Brasil, começaram a ser devastadas ainda na época do descobrimento para a construção de naus. Eram necessários até quatro mil carvalhos para construir uma embarcação. Bem mais tarde, a instalação da rede ferroviária exigiu uma enorme quantidade de lenha para as máquinas e trilhos; além disso, o desmatamento para a pecuária ajudou a desumanizar o que sobrou das florestas.

O que Rodrigo Ibarrondo está tentando fazer é voltar a dar dignidade às florestas. Em um depoimento à RFI Brasil ele conta que nestes cinco anos de projeto na Sierra de Gata foram plantadas 260 mil árvores de 35 espécies, entre carvalhos, sobreiros, castanheiras e medronhos. Todas semeadas por cerca de 1.200 mil voluntários de 47 nacionalidades.

Mesmo que haja incêndios, muitas destas espécies irão sobreviver e outras rebrotar depois de queimarem por serem mais resistentes ao fogo. "O projeto é um sucesso no sentido de ter mostrado que quando a sociedade se une e tem vontade de trabalhar em equipe pode se conseguir resultados bastante empolgantes".

"Mais do que restaurar a Sierra de Gata, o importante é criar um exemplo de como podemos realizar ações transformadoras não só na paisagem, mas também na consciência social". Rodrigo fala sobre outro projeto ambicioso  que lançou no ano passado, a "Red Ibérica de Guardianes del Bosque", cuja meta é semear 25 milhões de árvores. "Já conseguimos mobilizar mais de 20 mil pessoas de 400 coletivos diferentes". A intenção é reunir o maior número de pessoas na Península Ibérica, poder formá-los e criar uma rede forte para trabalhar na restauração de paisagens.

Desde sempre um princípio norteou os passos de Rodrigo Ibarrondo: estar a serviço da natureza. "Há séculos, milênios, roubamos tudo o que queremos dela; então agora podemos dar um pouco de volta. Descobri que a única coisa que a natureza quer da gente é que espalhemos sementes".  

Os que menos poluem serão os mais afetados

O aquecimento global já é uma das principais causas dos deslocamentos populacionais no mundo. O problema é que os países mais duramente afetados são os que menos contribuem para as mudanças climáticas. Populações cuja sobrevivência dependem, direta ou indiretamente, da pesca e da agricultura sofrerão impactos significativos em suas vidas.

Uma projeção feita pelo Banco Mundial indica que 140 milhões de pessoas deverão migrar para outros locais dentro de seus próprios territórios até 2050. Além da África Subsaariana, o sul da Ásia, América Latina e Caribe devem ser as regiões com os principais fluxos de migração forçada. Já a ONU fala de 200 milhões de deslocados nos próximos 30 anos.

Segundo o último relatório do Observatório de Deslocamento Interno (IDMC), 24.9 milhões de pessoas foram forçadas a fugir de suas casas por causa de estragos provocados pelas chuvas das monções, enchentes, tempestades tropicais, incêndios florestais, ciclones, furacões e terremotos em 2019.

Os países mais atingidos foram a Índia, Filipinas, Bangladesh e China, cada um com mais de 4 milhões de deslocados internos. "Geralmente estas pessoas são muito vulneráveis, vivem em campos lotados, refúgios de emergência ou assentamentos informais, com pouca ou nenhuma assistência médica", afirma Alexandra Bilak, diretora do IDMC.

Status de refugiado climático

No futuro, o status de refugiado climático poderá ser reconhecido pelo direito internacional, se houver vontade política. Enquanto acompanhamos um debate interminável sobre o tema, regiões e países estão por um triz de se tornarem inabitáveis, como é o caso do arquipélago de Kiribati, no Oceano Pacífico, fadado a desaparecer nos próximos 15 anos.

Apesar da falta de reconhecimento do termo refugiado climático na jurisdição internacional, a história de Ioane Teitiota, natural de Kiribati, é sem dúvida um marco importante. O aumento do nível do mar em Kiribati criou problemas como superpopulação, violência e tensões sociais, além da escassez de água potável. Teitiota se mudou para Nova Zelândia em busca de melhores condições de vida. Porém, depois de alguns anos, foi expulso e repatriado. Ele recorreu então à Corte Internacional da ONU pelo direito de ser considerado um refugiado climático.

Em janeiro último, em uma decisão histórica, a ONU considerou ilegal que governos forcem pessoas a voltarem para países onde suas vidas estiverem ameaçadas pelos efeitos do aquecimento global.

A Convenção da ONU sobre o Estatuto dos Refugiados prevê cinco motivos pelos quais as pessoas podem pedir asilo por temor de perseguição. São eles: raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social e opiniões políticas. Ainda hoje, sob a ótica do direito internacional, quem se desloca por causa das mudanças climáticas é migrante e não refugiado.

Ao migrarem em busca de segurança e abrigo por causa de catástrofes ambientais, muitos permanecem dentro do país de origem, e assim podem ser considerados deslocados internos, recebendo auxílio do governo local ou de ONGs. Porém, se ultrapassarem as fronteiras, não existe nenhum instrumento legal a nível internacional que possa garantir a segurança destas pessoas.

"Para salvar o mundo, temos que salvar Tuvalu"

François Gemenne, diretor do The Hugo Observatory, da Universidade de Liège, ressalta que os deslocamentos ambientais no mundo mostram que os problemas são profundamente complexos.

"Essas migrações são tanto econômicas e políticas como ambientais, elas não são separadas de outras dinâmicas migratórias. Na África subsaariana, a metade da população depende da agricultura de subsistência, principal fonte de renda da região. Se o meio ambiente se degrada, se as temperaturas ou os índices de pluviosidade mudam, eles perdem a fonte de sustento. Os africanos que chegam atualmente na Europa podem ser definidos tanto como migrantes climáticos como econômicos", explica o cientista político para Reporterre.

Segundo Gemenne, com as mudanças climáticas uma série de abordagens analíticas não terão mais sentido: as fronteiras, a soberania. O que significa soberania nacional em Tuvalu, quando a subida do nível do mar já submergiu parte da ilha? Qual será o conceito de fronteiras quando a geografia dos mapas for completamente redesenhada?

Quando o ex-primeiro-ministro da pequena ilha do Pacífico, Enele Sopoaga, afirmou que migração não era a solução, talvez fosse possível admirar os recifes de corais coloridos em Tuvalu. Hoje, cinco anos depois, não é mais. Com a temperatura elevada das águas do mar os corais perderam as microalgas que davam cor a seus tecidos e ficaram brancos.

Na época, Sopoaga tentou explicar aos políticos europeus em Bruxelas que era até viável deslocar os habitantes de Tuvalu para outros países, mas isso não iria parar o aquecimento global. "Para salvar o mundo, temos que salvar Tuvalu", alertou.