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Erdogan quer Turquia líder do mundo islâmico enquanto moeda desaba em crise histórica

27/10/2020 06h55

A relação entre Turquia e França nunca esteve tão tensa desde o fim da Primeira Guerra Mundial, há mais de um século. Mas, por trás da cortina de fumaça deste conflito binacional, escondem-se intenções não tão claras quanto as declarações provocativas do presidente turco, Recep Tayip Erodgan, contra seu colega francês. Muito além do "boicote" aos produtos franceses, Erdogan mira numa liderança da Turquia no mundo islâmico, numa tentativa de manter uma estrutura de poder em plena crise econômica, com a lira turca desabando catastroficamente a níveis históricos.

Fernanda Castelhani,correspondente da RFI em Istambul

Em discurso em Ancara, na segunda-feira (26), Recep Tayyip Erdogan pediu que a União Europeia ponha fim ao que classificou como "agenda anti-Islã" do presidente francês, Emmanuel Macron. No último sábado, o presidente turco deu início à escalada de "insultos" [sic, Palácio do Eliseu], dizendo que Macron precisava "se submeter a exames mentais" por promover "separatismo islâmico".

A reação de Erdogan acontece após declarações do presidente francês sobre a publicação de caricaturas de Maomé, na sequência do assassinato do professor Samuel Paty, decapitado perto de Paris por um terrorista. Erdogan convidou ainda o mundo islâmico a "acolher os muçulmanos oprimidos" na França: "A crescente islamofobia no Ocidente se tornou um ataque total ao Corão e ao Profeta", declarou.

Mas o que estaria por trás da postura do presidente turco? A resposta é cada vez mais clara: propaganda interna e externa. Erdogan quer angariar cada vez mais suporte local num país cuja economia vai muito mal. A lira turca atinge níveis históricos de desvalorização. Nesta semana, ultrapassa a marca de US$ 8 dólares.

Além disso, o presidente turco quer chamar atenção de outras nações de maioria muçulmana, mostrando-se como um grande representante religioso e porta-voz do Oriente Médio. Ao aumentar o nível de tensão dos conflitos, ele tira o foco da situação turca e põe em evidência suas intenções expansionistas como nova "potência otomana". Isso porque os atritos entre os dois chefes de Estado não são novos.

Conflitos recentes entre França e Turquia não são novidade

França e Turquia assumiram posições opostas nas guerras regionais da Síria, da Líbia, do Iraque e entre Armênia e Azerbaijão, mas a situação se agravou mesmo a partir de agosto depois que a França enviou navios no Mediterrâneo para se opor às reivindicações da Turquia sobre as reservas de gás natural nas proximidades de uma pequena ilha grega perto de Chipre.

Sob essa perspectiva, fica claro que Erdogan usou as falas do presidente francês após o assassinato do professor Samuel Paty para deslegitimar as recentes manobras da França na política internacional. 

Repercussão local tem voz única

Internamente, no entanto, toda a mídia turca condena Macron. Num país em que os meios de comunicação são vigiados pelo governo, centenas de jornalistas e políticos opositores estão presos e em que a liberdade de expressão não é plena, os acontecimentos já chegam sem variações de posicionamento.

Os grandes veículos turcos acusam o presidente francês de estigmatizar a minoria muçulmana, textos editoriais falam de um passado colonial mal resolvido na França e diferentes analistas teorizam sobre uma radicalização à direita de Emmanuel Macron para tentar se reeleger.

Na vida cotidiana na Turquia, nada mudou depois do pronunciamento do presidente Erdogan para que a população boicote os produtos franceses.

PSG x 'Erdogan FC'

O time francês Paris-Saint-Germain (PSG) enfrentará na quarta-feira (28) aqui em Istambul, pela Liga dos Campeões, não o famoso Galatasaray ou o Fenerbahçe, mas o jovem clube Basaksehir, atual titular do campeonato turco. Criada em 1990 com outro nome, a equipe foi comprada em 2014 por integrantes do AKP, o partido do presidente turco, em plena campanha pelas eleições presidenciais.

Há 6 anos, o time assumiu o nome Basaksehir e se mudou para o bairro de mesmo nome, um reduto conservador criado por Erdogan quando ele foi prefeito da cidade. O time é patrocinado por um grupo hospitalar de propriedade do médico pessoal do presidente turco que, por sinal, é Ministro da Saúde. Além disso, o dirigente do clube é casado com uma sobrinha da primeira-dama turca. Coincidências demais para não apontar o futebol como mais um instrumento de manipulação do poder por Erdogan.