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"Pierre Verger encontrou o seu lugar em Salvador", diz autor de livro sobre o célebre fotógrafo e etnógrafo francês

28/10/2020 14h41

O antropólogo francês Jérôme Souty lançou em Paris a segunda edição do livro Pierre Fatumbi Verger, sobre a vida e a obra de um dos maiores pesquisadores das culturas e religiões afro-brasileiras. Duas exposições em Paris destacam as fotos de Verger sobre o candomblé no Brasil e os rituais iorubás no Benin e na Nigéria.

Pierre Verger abandonou em 1932 uma vida burguesa em Paris e começou a viajar pelo mundo em busca de novas descobertas. Depois de várias passagens pela África, desembarcou em Salvador em 1946 e foi amor à primeira vista. A partir daí, ele desenvolveu 50 anos de pesquisas focadas nos cultos das divindades orixás e voduns nos dois lados do oceano Atlântico.

Essa trajetória fascinante do francês, conhecido no Brasil pelo documentário de 1999 "Mensageiro entre dois mundos", narrado por Gilberto Gil, é esmiuçada por Jérôme Souty em um livro que ele considera "um ensaio antropológico e também um retrato transcultural entre África, Brasil e Europa".

Doutor em antropologia social pela EHESS (Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales de Paris), Souty analisa nesse livro, publicado pela primeira vez em 2007 na França e em 2011 no Brasil (onde está esgotado), a obra artística e científica de Pierre Verger, que além de fotógrafo e etnógrafo, foi botânico e historiador. "Verger teve várias vidas em uma só" - diz Souty.

Babalaô

No livro de Jérôme Souty, fica evidente que a liberdade e a empatia de Verger com as comunidades afro-brasileiras o guiaram durante todo o seu trabalho de fotógrafo e etnógrafo. "A grande diferença de Verger com os outros pesquisadores é que ele não chegou no campo como um intelectual", diz o antropólogo.

"Ele não queria estudar as pessoas e sim conviver com elas", explica o autor do livro. "Chegando em Salvador, em 1946, ele se apaixonou pela cultura popular, pelo modo de vida dos baianos e pela religiosidade do candomblé. Depois de muitos anos de fuga, Verger encontrou o seu lugar em Salvador".

Souty insiste que o compatriota foi um dos primeiros pesquisadores a mergulhar nas culturas afro-Atlânticas. Não somente no candomblé do Brasil, mas também na "matriz" dessas culturas e dessas religiões, que vêm do Benin e da Nigéria: o grupo dos iorubás - Nagôs no Brasil - e os Fon, que são os Jejes no Brasil.

Verger conseguiu estabelecer uma relação entre Brasil e África. Até os anos 1940, as relações entre Salvador e o Golfo do Benin eram quase inexistentes. No Brasil, ele explicava aos líderes religiosos do candomblé como eram os cultos na África e em suas viagens ao Benin ou Nigéria ele mostrava fotos dos rituais e costumes dos descendentes dos escravos no Brasil. "Ele foi um dos primeiros a perceber que era uma cultura transatlântica", observa.

Na África, Pierre Verger foi "rebatizado" em 1953 pelo Ifá, o "sistema divinatório" iorubá, com o nome de Fatumbi e se transformou em um Babalaô, um dos guardiães do saber iorubá. Para Souty ele foi um dos maiores conhecedores dessa enciclopédia oral iorubá, além de ter desenvolvido um vasto conhecimento sobre a farmacopeia dessas comunidades, que utilizam muitas plantas para uso terapêutico e nos chamados "rituais mágicos".

O papel da Rolleiflex

Um dos criadores da prestigiosa agência Alliance Photo, nos anos 30, Verger sempre trabalhou com a Rolleiflex, uma câmera reflex de objetivas gêmeas, que ficava pendurada no pescoço do fotógrafo e lhe permitia enquadrar a foto sem levar o visor aos olhos.

Verger dizia que essa câmera o obrigava a fazer uma espécie de reverência ao modelo fotografado. Ele tinha que se curvar diante do mesmo e lembrava que esse tipo de máquina fotográfica ficava em contato com o seu umbigo. "Ele tinha uma teoria de que fotografava de maneira inconsciente e que só quando a foto era revelada ele compreendia porque a tinha feito" - lembra Souty.

"Ao contrário de outro célebre fotógrafo francês, Henri Cartier-Bresson (1908-2004), que queria roubar a imagem e pegar o instante decisivo, Verger fazia parte da paisagem, convivia com as pessoas até ser completamente aceito por elas e, a partir daí, não era mais visto como fotógrafo".

Segundo Souty, ele rompeu com a estética da fotografia colonial francesa, dos anos 40 aos anos 60. "Em suas fotos, você não percebe a presença do fotógrafo".

Lugar de Fala

Pierre Verger, homem branco, francês, foi um mensageiro entre as culturas e religiões da África e dos negros no Brasil. Atualmente, com toda a discussão sobre o Lugar de Fala das diferentes comunidades, esse papel de transmissor de cultura desempenhado por um branco, europeu, não seria objeto de polêmica e críticas?

"É realmente uma discussão muito atual e contemporânea. Mas a gente tem que se colocar no contexto da época", comenta Souty. "Verger sempre quis ser negro. Ele se identificou totalmente e principalmente com os afrodescendentes no Brasil e com os africanos do Benin e Nigéria. Ele sempre falava: que pena que nunca consegui entrar em transe, que pena que eu não tenho a pele Negra", lembra.

Segundo o antropólogo, é importante frisar que o compatriota era muito bem aceito pelas confrarias, pelas comunidades secretas, iniciado no Ifá...E graças a isso, compartilhou um conhecimento inigualável sobre essas culturas. "Nesse contexto cultural e ritual que ele viveu, a questão da cor não se colocava "acrescenta.

Jerôme Souty conclui a entrevista admitindo que essa é uma questão legítima e observa que "Verger idealizou demais a convivência racial da Bahia nos anos 50 e 60". Mas assinala a importância de um estudioso que "defendeu incansavelmente o candomblé, as religiões afro-brasileiras e o culto dos orixás".

O livro "Pierre Fatumbi Verger - Du regard détaché à la connaissance initiatique", de Jérôme Souty, foi reeditado pela Maisonneuve&Larose.

A galeria Vallois, em Paris, expõe em dois espaços diferentes séries de fotos de Pierre Verger até 28 de novembro: www.vallois.com