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Bolsonaro e Fernández devem encerrar 'era de gelo' em 1ª reunião bilateral

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o presidente da Argentina, Alberto Fernández - Marcos Corrêa/PR e Juan Mabromata - Pool/Getty Images
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o presidente da Argentina, Alberto Fernández Imagem: Marcos Corrêa/PR e Juan Mabromata - Pool/Getty Images

Márcio Resende

Correspondente em Buenos Aires

30/11/2020 07h43

Inimigos político-ideológicos, os presidentes Alberto Fernández e Jair Bolsonaro (sem partido) estão dispostos a depor as armas em uma videoconferência hoje, Dia da Amizade Argentino-Brasileira.

Os dois países são sócios estratégicos numa aliança considerada o eixo da integração regional, mas passaram um ano em trocas de farpas e ironias, além de assumirem posições opostas em assuntos da agenda mundial.

Bolsonaro e Fernández terão a primeira reunião bilateral pouco mais de um ano depois da eleição do argentino na presidência, em 27 de outubro do ano passado. Bolsonaro nunca cumprimentou o líder do país vizinho, deixando evidente uma inimizade política.

"O presidente Alberto Fernández manterá, a partir das 11h30, uma videoconferência com o seu homólogo do Brasil, Jair Bolsonaro, quando se completam 35 anos do encontro dos ex-presidentes Raúl Alfonsín e José Sarney em Foz do Iguaçu", informou a Casa Rosada, o palácio do governo argentino.

Em 30 de novembro de 1985, os dois presidentes reuniram-se na fronteira entre Brasil e Argentina para traçarem um plano de integração político-econômica, desativando uma das hipóteses de conflito bélico que havia durante a Guerra Fria.

Aquele encontro bilateral aconteceu quando o Brasil acabava de recuperar a democracia, enquanto a Argentina, pioneira na região, já havia eleito democraticamente um presidente em 1983. Os dois países libertavam-se da ditadura, a mesma que Bolsonaro até hoje reivindica.

Essa aliança tornou-se o eixo da integração regional, materializada por meio do Mercosul (Mercado Comum do Sul), área de livre comércio estabelecida em 1991 que passou a união alfandegária, em 1995.

Em 15 de março de 2004, os então presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da Argentina, Néstor Kirchner, instituíram a data como o Dia da Amizade Argentino-Brasileira.

Fim da era de gelo

"Fernández e Bolsonaro procurarão fortalecer as múltiplas agendas comuns para uma melhor integração", informou a nota da Casa Rosada, enfatizando que "o Brasil novamente se posicionou como o principal sócio comercial da Argentina", recuperando o lugar que, nos últimos meses, tinha sido superado pela China.

A reunião por videoconferência facilita um primeiro encontro depois da troca de provocações ideológicas, além de posições opostas em assuntos como Venezuela, Bolívia, Acordo Climático de Paris e aborto.

Bolsonaro considera Fernández como um representante populista da esquerda latino-americana que defende, por ação ou por omissão, o regime do venezuelano Nicolás Maduro. Já Fernández pensa que Bolsonaro é "racista, misógino e violento".

Fernández foi o primeiro presidente a cumprimentar Joe Biden pela vitória nas urnas nos Estados Unidos, enquanto Bolsonaro ainda não parabenizou o democrata eleito para a Casa Branca.

Fernández considera que a vitória de Biden abre um panorama geopolítico multilateral no qual o Mercosul terá um papel relevante na região. Bolsonaro apostava tudo numa relação bilateral com Donald Trump.

"Fricções políticas"

O encontro entre os dois foi costurado pelo embaixador argentino no Brasil, Daniel Scioli, que, no último dia 30 de setembro, numa videoconferência com 300 empresários argentinos, da qual a RFI participou, revelou que "trabalhava para um encontro pessoal entre os presidentes de Brasil e Argentina no dia 30 de novembro na fronteira bilateral de Foz do Iguaçu-Puerto Iguazú".

"A disposição é de trabalharem juntos e de deixarem os desencontros e as fricções políticas para trás", garantiu o embaixador argentino no Brasil.

"Eu pedi ao presidente Bolsonaro (no dia 19 de agosto) que encaminhe a relação com base no respeito e na vontade popular do povo argentino", contou Scioli, porque "o governo brasileiro tem demonstrado uma intromissão em assuntos internos da Argentina".

"Respeitamos a questão ideológica. Não queremos conflito", insistiu o embaixador argentino. "Alberto Fernández me pediu para dizer a Bolsonaro sobre a vontade que ele tem de trabalharmos juntos e eu perguntei a Bolsonaro qual é realmente a vontade dele", disse Scioli.

Segundo o embaixador argentino, Bolsonaro respondeu que "a sua vontade é a de trabalharem juntos, de deixar para trás os desencontros e de enfocarem os esforços numa agenda positiva".

Mas ataques continuaram

No entanto, o deputado Eduardo Bolsonaro publicou nas redes sociais, no dia 2 de setembro, que seu pai "acertou quando previu que a situação na Argentina viraria uma calamidade".

Para desconforto do embaixador argentino, o presidente Bolsonaro disse em setembro que "a esquerdalha, responsável pelo fracasso da Argentina, voltou ao poder". "E está indo rapidamente para um regime semelhante ao da Venezuela", acrescentou, durante uma transmissão pelas redes sociais. "Lamento, povo argentino, é o que vocês merecem", afirmou.

Bolsonaro e Fernández nunca se falaram embora um represente o país estrategicamente mais importante para o outro na região. Além de não cumprimentar o líder argentino pela vitória, Bolsonaro não foi à posse de Fernández, ocorrida em 10 de dezembro passado.

Proximidade com Lula atiça rivalidade

Os ataques mútuos começaram em junho do ano passado, quando Bolsonaro começou a fazer campanha a favor da reeleição do ex-presidente Mauricio Macri e alertou para o risco de Fernández transformar a Argentina numa nova Venezuela.

No mês seguinte, Fernández visitou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na prisão, na sede da PF em Curitiba, e depois, em outubro, durante o seu discurso de vitória, pediu a liberdade de Lula, maior inimigo político de Bolsonaro.

O deputado Eduardo Bolsonaro zombou de Estanislao Fernández, filho do presidente argentino. Numa publicação nas redes sociais, o filho 03 do capitão da reserva exibiu fuzis de grosso calibre, enquanto Estanislao, autodeclarado bissexual, conhecido drag queen e cosplayer, aparecia vestido de um erótico Pikachu, personagem de Pokémon.

Disputa em torno do coronavírus

Nos primeiros meses da pandemia, o governo argentino exaltava o bom desempenho do país no combate ao coronavírus, enquanto apontava os dados negativos da epidemia no Brasil.

"Enquanto a Argentina protege a saúde humana em primeiro lugar, o Brasil protege a economia e deixa a pandemia se expandir", comparou o chanceler argentino, Felipe Solá.

No entanto, a Argentina é hoje o nono país com mais casos de covid-19 no mundo. O país registra 1,419 milhão de contagiados e 38.473 mortos. Em relação à sua população, ocupa o 24° posto, enquanto o Brasil aparece em 29°. Já em número de óbitos em proporção à população, a Argentina ocupa o 8° posto, enquanto o Brasil figura em 12°.

A economia argentina deve encolher mais de 13% em 2020, enquanto a brasileira, menos de 5%.