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"O medo para uma pessoa preta é uma constante", diz coordenadora de núcleo antirracista da PM-BA

02/12/2020 13h23

Mulher, negra, candomblecista e PM, Thais Ramos Trindade é capitã da Polícia Militar da Bahia e coordenadora do Núcleo de Matriz Africana da entidade, o Nafro, que completa 15 anos em 2020 e atua no combate ao racismo e em prol da diversidade religiosa. Nesta entrevista à RFI, a capitã, que é professora de Direitos Humanos, conta como tenta despertar o sentimento de pertencimento em seus colegas também negros. 

Mestranda em Segurança Pública pela Universidade Federal da Bahia, a capitã possui graduação em Segurança Pública pela Academia de Policia Militar e em Direito pela Universidade do Estado da Bahia, além de especializações em Ciências Criminais, Direito Constitucional e Direitos Humanos.

"O Nafro foi criado em 2005 por causa de uma inquietude do sargento Eurico, hoje na reserva. Ele é candomblecista e, durante um evento interreligioso aberto ao público, mas com uma representação da PM, percebeu que ele não estava representado. Ele foi até o comandante-geral e sinalizou que ele e outros colegas de religião de matriz africana não se sentiam representados nestes eventos. A partir da determinação e coragem deste sargento nasce o Nafro, para assistir, a princípio, os policiais que são religiosos de matriz africana", relata Thaís.

Mas a atuação do Nafro ultrapassa a religiosidade. "Hoje, além de assistirmos e participarmos de  eventos interreligiosos; nós fazemos palestras sobre respeito e diversidade para os policiais militares e também para fora", diz.

Denúncias de intolerância religiosa aumentaram 56% no Brasil em 2019. Nos casos identificados, os ataques às religiões de matriz africana são os mais numerosos. Os dados são coletados pelo Disque 100, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. 

"Ao longo deste período de 15 anos, nós fizemos diversas palestras, sobretudo ligadas a questões raciais. Mas nós percebemos que, para além das palestras, nós precisaríamos fazer um outro tipo de movimento. A gente percebeu que o racismo estrutural afeta também a nós, policiais militares", alerta a capitã.

Resgate da identidade

"Numa polícia como a baiana, onde há uma representatividade muito grande de policiais pretos e pretas, que viram na Polícia um instrumento de sobrevivência, de sustento, de acensão social, a gente percebeu que a gente precisava fazer um trabalho com estes policiais para que eles se percebam negros", explica Thaís, acrescentando que o Nafro realiza um trabalho de saúde emocional numa "perspectiva afrocentrada".

A capitã, que é professora de Direitos Humanos e de Relações Interpessoais na PM-BA, procura despertar a consciência dos policiais por meio de um trabalho identitário. 

"Eu tenho como alunos pessoas pretas que são policiais que vivem violências constantes, ligadas à própria atividade policial. Eu acredito que seja a única profissão em que a gente está 24 horas imerso na violência. Então eu preciso fazer um trabalho com este policial que por vezes se depara com pessoas iguais a ele e não percebe que estas pessoas são como ele", observa.

"O nosso principal desafio é resgatar este indivíduo policial na sua perspectiva, na sua identidade, no seu pertencimento de ser preto. Mesmo ele estando imerso em uma estrutura racista, que também recai sobre o corpo dele, e imerso numa profissão que lida constantemente com violência", resume.

Fim da PM?

A Bahia é o terceiro estado do país com a maior quantidade de pessoas mortas pela polícia e o quarto com maior número de policiais assassinados no primeiro semestre de 2019. Diante de tanta violência, muitos grupos ligados aos Direitos humanos pedem o fim da Polícia Militar.

Para a capitã Thaís, "a segurança pública é um direito fundamental, um direito humano. Até porque segurança é um viés para a manutenção da vida, da educação e outros direitos fundamentais".

Outro ponto que ela cita é que talvez a Polícia Militar da Bahia seja a instituição que mais emprega pessoas pretas (não há, até o momento, estatísticas oficiais sobre isso). "A gente precisa ponderar esta afirmação e as alternativas a isso", defende. 

"A gente precisa perceber este indivíduo policial, sobretudo baiano, preto, que veste uma farda marrom, sua segunda pele. Mas a gente precisa ver a primeira pele dele. Tanto a sociedade quanto nós policiais precisamos enxergar esta primeira pele", conclama.

"Este quadro de pessoas mortas ao chão, fardadas e não fardadas, com a mesma cor, isso nos reflete algo para além da violência policial, algo muito maior que está deixando os nossos corpos no chão. Talvez este seja o foco da questão", questiona.

Racismo e medo

Questionada se sente mais medo de sair na rua, como mulher negra, de farda ou sem farda, a policial disse: "O medo para uma pessoa preta é uma constante. Eu não consigo responder esta pergunta porque eu não consigo me desvencilhar de uma coisa ou outra. Até porque eu também sou candomblecista e isso seria uma terceira farda, um terceiro medo".

"Mas estas três personas me compõem de tal forma, porque uma me dá o sustento financeiro, outra me diz quem eu sou e a outra me faz ter a ligação com o ori [palavra em yorubá que significa o orixá pessoal, em toda a sua força e grandeza]. E todas estas três coisas, que são minhas, que são o meu pertencer, incomodam, elas não dialogam com a estrutura racista. Elas me fazem morrer todos os dias ainda quando eu não morro fisicamente", desabafa.

Segundo a capitã, o Nafro é visto como uma agenda positiva dentro da Polícia. É o primeiro núcleo do Brasil que depois influenciou outros, segundo ela. "Eu acredito que a nossa seja a única polícia que tem a coragem de dialogar sobre a temática dentro de uma perspectiva antirracista." 

 

 

"O pano estratégico da Secretaria de Segurança Pública é fornecer até 2025 um policiamento de excelência. E a prática antirracista está dentro deste contexto, então a gente precisa, sim, de ações como as do Nafro", defende Thaís.

Filosofia ubuntu

O Nafro não para. Os planos para curto prazo são realizar um primeiro censo para saber quem são os policiais baianos e também se ocupar da saúde mental destes profissionais. 

"Quando eu digo que existe um grande número de policiais pretos e pretas na PM da Bahia, eu digo a partir do meu olhar e do olhar de outras pessoas, a gente não tem um quantitativo. E como a gente entende que é necessário quantificar estes policiais, até para prestar um serviço melhor a eles, a gente vai desenvolver - já está em vias de lançamento - um censo. Pra saber quem é este policial", conta, entusiasmada. 

"Vamos lançar também um curso que lida com a saúde emocional dentro de uma perspectiva da filosofia ubuntu, mas também com questões jurídicas, raciais, de identidade e de pertencimento", diz Thaís que é professora de Direitos Humanos no curso de formação da PM.

"A gente sabe que precisa dialogar sobre isso o ano todo, até porque nós morremos o ano todo", defende.

Desconstrução de preconceitos

Quando as pessoas entram na Polícia, conta Thaís, elas entram com um imaginário bem diferente da realidade, sobretudo na disciplina de Direitos Humanos. "O aluno vem com várias afirmações que são desconstruídas ao longo do processo de formação. Por exemplo, ele não se percebe como promotor de Direitos Humanos", conta.

"Ele imagina os direitos humanos como sendo um ente que chega lá e retira os direitos dele e entrega ao marginal, ao delinquente. Quando ele vem para a sala de aula, ele percebe que esta figura inanimada - ou animada - é exatamente ele. Porque é ele que promove os direitos humanos", explica.

"Ontem mesmo eu estava ministrando esta aula e, ao fim do processo, um dos policiais que é aluno me falou: 'Nunca tinha pensado sob este ponto de vista'. Quando eu ouço isso, eu penso: o objetivo foi alcançado!"", comemora

Chacina do Cabula

Este ano fez cinco anos que 12 jovens negros foram mortos no crime que ficou conhecido como a Chacina do Cabula (bairro pobre da capital baiana). Segundo denúncias, foram mortos por nove PMs. Estes policiais ainda respondem pelo crime e trabalham normalmente.

Confrontada com esta questão, a capitã respondeu: "O Nafro não tem uma perspectiva sancionadora: a atuação do Nafro dentro da PM é educativa e religiosa. Para sanções, temos a Corregedoria".