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Sem aprovar projetos, Bolsonaro usou pandemia para investir em polêmicas, avalia cientista política

17/12/2020 16h59

Pesquisadora Mayra Goulart avalia que aprovação do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) cresceu entre os mais pobres, mas ele não tem como garantir ampliação de programas sociais nem votação de projetos no Congresso. Em entrevista à RFI, ela destaca a desidratação do presidente entre os mais escolarizados e diz que a pandemia deu ao governo a oportunidade de fazer polêmica disfarçando a falta de políticas públicas.

Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília.

Em plena pandemia, com a economia no chão e um discurso negacionista inclusive quanto à vacina contra a covid-19, Jair Bolsonaro manteve a maior aprovação de seu mandato.  Para a professora de ciência política da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) Mayra Goulart, a pandemia ajudou um governo ancorado em bravatas e polêmicas, fraco em apresentar e votar projetos.

Pesquisa do Datafolha trouxe que o presidente manteve no fim de 2020 o percentual mais alto, que ele havia atingido em agosto. Apesar de ter aprovação abaixo da de outros presidentes no primeiro mandato, com exceção de Fernando Collor, ele avançou na aprovação em determinados segmentos sociais. Pesquisa Ibope de quarta-feira mostra que a aprovação de Bolsonaro caiu de 40% em setembro para 35% agora em dezembro, porém continua superior aos números positivos que ele tinha no fim do ano passado.

Goulart porém ressalta que não é possível dizer que tudo se resume ao pagamento do auxílio emergencial, que atendeu a quem ficou sem trabalho no isolamento.

"Acho que é preciso ter cautela em fazer uma associação entre auxílio emergencial e alta de popularidade. Alguns estudos foram feitos e mostram que a correlação estatística não é tão determinante como se achava. Não há uma relação tão direta no apoio ao governo entre quem recebe e quem não recebe o auxílio. Mas eu concordo que a pandemia acabou sendo positiva para o governo Bolsonaro. Porque esse governo tem como modus operandi a polêmica. Polêmica com a mídia, com a sociedade civil, com inimigos reais ou imaginários, porque esse governo entrega muito pouco em termos de política pública, em termos de propostas reais. Mesmo na pauta conservadora ele aprova muito pouco porque não tem base sólida no Legislativo."

Para Goulart, prova de que o governo terá dificuldade em assegurar, pelos próximos anos, apoio entre os que estão no piso da pirâmide social é que não incluiu na lei orçamentária do ano que vem a ampliação do Bolsa Família, como tanto propagandeou o presidente.

"Pode haver até frustração, um efeito ao contrário". Mesmo o apoio que o governo tem construído com o centrão pode não ser suficiente para levar adiante uma pauta mais positiva para o presidente.

"Essas negociações são feitas por meio de emendas parlamentares, cargos pontuais, que não estabilizam uma coligação. Mesmo que ele consiga uma maior penetração no Nordeste. E ele conseguiu. Pelo Datafolha, por exemplo, ele elevou a aprovação de bom e ótimo em 9 pontos e a nota ruim ou péssima caiu 14 pontos percentuais, ou seja, a soma positiva dele foi de 23 pontos no Nordeste. Mas, em outras regiões não houve algo assim. E por mais que ele garanta apoios pontuais nesse contexto de pandemia, ele não vai conseguir aprovar sua agenda nos próximos anos."

A pesquisadora diz que, para atender a agenda do mercado financeiro, medidas que poderiam consolidar um apoio do presidente em regiões como o Nordeste dificilmente sairão do discurso. "Então o que vai dar sustentáculo ao governo é o apoio inequívoco dos mercados financeiros, porque a conduta dessa gestão passa por garantir que os interesses do mercado não sejam ameaçados. É importante notar que a equipe econômica de Bolsonaro não incluiu nada do que ele falou sobre ampliar o Bolsa Família ou mesmo criar um novo e maior programa, que pagasse mais. Nada disso entrou na Lei Orçamentária enviada ao Congresso".

Queda entre os mais escolarizados

Goulart também vê uma diferença na base de apoio do presidente na sociedade. "Três grandes elementos foram importantes na vitória de Bolsonaro. O primeiro é o ideológico, conservador. O segundo são os militares. E o terceiro é o lava-jatismo, ancorado no discurso anticorrupção, com link importante com as classes mais escolarizadas e a classe média. Desde a saída de Sérgio Moro e Henrique Mandetta do governo há um rompimento dessas camadas. E vem delas muitos dos que estão sequiosos de que a pandemia seja conduzida com critérios científicos e não com bravatas negacionistas e, nesse segmento, houve uma desidratação substantiva. Na soma ele tem menos 12 pontos entre os que têm renda superior a dez salários mínimos. Entre os mais escolarizados, houve uma queda na aprovação de 16 pontos".

Ela diz que "Bolsonaro difere da maioria dos líderes populistas de direita, dessa nova direita, como Trump. Pois ele foi eleito com voto alto das classes mais escolarizadas, teve mais apoio entre os mais ricos do que entre os mais pobres. Isso é significativo porque é justamente nesse segmento dos que têm renda mais alta e mais anos de estudo que a aprovação dele está desidratando. Enquanto há uma alta da aprovação dele nas classes mais baixas".

A cientista política também falou do novo desafio da esquerda, frente aos números das pesquisas. "Se fossem continuadas essas transferências maiores de renda, a esquerda perderia um pouco o monopólio discursivo sobre esse tema, que remete aos governos petistas. De toda forma, com Bolsonaro avançando no discurso sobre esse campo, a diferenciação acaba caindo muito na pauta de costumes, pauta das mulheres, defesa da democracia, que são temas muito importantes, mas com peso eleitoral menor. Então, claro que há um desafio na esquerda em recompor um discurso. Mas houve avanços na esquerda com destaque para novas lideranças como Guilherme Boulos e Manuela D'Ávila, que dialogam bem nesse campo dos costumes, sem perder a conexão com a questão econômica".