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"Como um pai pode fazer isso com sua própria filha?": vítimas de incesto denunciam agressores em redes sociais na França

18/01/2021 14h11

Depois do #MeToo, a França é palco de um grande movimento contra o incesto. No último fim de semana, milhares de testemunhos invadiram as redes sociais, colocando em evidência o fracasso das autoridades em lidar com a questão.

"Eu tinha 15 anos. Como um pai pode fazer isso com sua própria filha? O efeito bumerangue chegou apenas aos 50 anos. Minha condenação = traumatizada para sempre, com tentativas de suicídio recorrentes", afirma a internauta Jackye Gonin no Twitter.

O depoimento desta francesa não é o único. As redes sociais são palco desde sábado (16) de milhares de depoimentos, depois que duas militantes do coletivo feminista francês "Nous Toutes" lançaram a iniciativa de denunciar esse tipo de abuso, através de testemunhos acompanhados pela hashtag #MeTooInceste. A mobilização faz referência ao #MeToo, movimento contra o assédio e violências sexuais a mulheres lançado em 2017 nos Estados Unidos, e que ganhou versões em vários países.

A iniciativa veio à tona após um escândalo que sacudiu a França recentemente. No início de janeiro, o célebre cientista político Olivier Duhamel foi acusado de incesto por sua enteada, a jurista Camille Kouchner. No livro "La Familia Grande", ela conta as agressões sexuais das quais o irmão gêmeo foi vítima, aos 14 anos, por parte deste famoso intelectual francês, nos anos 1980.

Apesar da forte comoção que suscitou, o episódio não é exceção na França. De acordo com uma pesquisa recente, 6,7 milhões de franceses foram vítimas de incesto - entre eles, 78% são mulheres.

Os agressores são, em sua maioria, o próprio pai, avô, tio, irmão ou primo da vítima. Em comum entre todas essas histórias vivenciadas por crianças de 5, 10, 15 anos, violências sexuais e estupros que ocorreram dentro de suas próprias casas, em episódios que podem se repetir durante vários anos. Muitos sob o conhecimento de mães ou avós, que preferem se calar a enfrentar o problema.

As vítimas que denunciam os abusos nas redes sociais fazem parte de faixas etárias variadas, o que mostra que o problema atravessou décadas e continua a assombrar a vida de crianças. Militantes afirmam que em cada sala de aula da França, dois ou três alunos são vítimas de incesto.

O peso do silêncio

O francês Guillaume foi muito além das redes sociais e falou ao canal de TV France 2 sobre as agressões sexuais que sofreu da parte do pai, quando tinha pouco mais de quatro anos de idade.

"Geralmente acontecia no meu quarto, à noite, quando minha mãe estava dormindo. Às vezes, durante o dia, quando estava sozinho com meu pai. Eu cresci com isso, cresci com o peso desta história e o peso do silêncio", relembra.

Além da violência sexual, as crianças vítimas deste tipo de abuso nas famílias são facilmente manipuladas. Guillaume faz parte dos 84% dos casos em que as vítimas são silenciadas, segundo dados da associação francesa Face à L'Inceste (Diante do Incesto).

"Meu pai me dizia que se eu falasse para alguém sobre isso, teria problemas. Quando você diz isso para uma criança de quatro anos e meio, cinco anos, ela obedece. O que me impediu de falar sobre isso foi o medo de ter problemas, o medo de destruir minha família", ressalta.

Guillaume foi estuprado durante vários anos. Foi somente aos 27 que teve coragem de denunciar os abusos, pouco antes da morte do pai. Segundo ele, foi somente durante a vida adulta que "o verdadeiro pesadelo começou".

"Isso abriu a porta a angústias, ao transtorno obsessivo-compulsivo, de arrumação, de limpeza. Eu limpava o banheiro quatro vezes por dia com água sanitária. Eu lavava o corpo com água sanitária. Tentei me suicidar cinco ou seis vezes", diz.

Mais de 25 anos depois dessas agressões, Guillaume continua a enfrentar as consequências do incesto. Há dois anos, está desempregado. No entanto, acredita que ter sido forte o suficiente para superar esse sofrimento.

"Se tenho a sorte de ter chegado até aqui hoje, foi graças à força que eu desenvolvi. Não são todos que conseguem se recuperar disso. E eu consegui", conclui.

"Ninguém está preparado para ouvir"

Em entrevista à RFI, Madeline Da Silva, uma das idealizadoras da iniciativa #MeTooInceste do coletivo Nous Toutes, afirmou que o objetivo era atrair a atenção da sociedade e mostrar ao governo a urgência de instituir políticas públicas contra esse problema.

A militante recusa a ideia do silêncio das vítimas sobre o incesto. No sábado, poucas horas após a criação da hashtag, cerca de 15 mil tuítes traziam à tona testemunhos sobre as violências sexuais vividas nas famílias. Nesta segunda-feira (18), as denúncias continuavam se multiplicando nas redes sociais.

"Os depoimentos continuam sendo publicados e vão continuar. O silêncio relacionado ao incesto não vem da parte das vítimas. Afinal, as crianças falam sobre isso, algumas através de palavras, outras através de sintomas que mostram seu sofrimento. Mas o problema hoje na França é que quase ninguém está preparado para ouvir e compreender esses sintomas para cessar essas violências", afirma.

As militantes também denunciam a falta de propostas do governo sobre a questão. Desde que o escândalo Duhamel veio à tona, nem o presidente francês, Emmanuel Macron, nem o primeiro-ministro Jean Castex, reagiram.

No domingo (17), em entrevista ao canal TF1, a primeira-dama Brigitte Macron fez um apelo em prol de uma reforma da Justiça para lutar contra o incesto na França. O secretário de Estado para a Infância, Adrien Taquet, descreveu recentemente o incesto como "um crime sem cadáver" e antecipou o lançamento em breve de uma comissão sobre o tema. No centro dos debates, está também a questão do consentimento, além da prescrição do crime, limitada a 30 anos depois que a vítima atingiu a maioridade.

A lei francesa estabele hoje que qualquer ato sexual entre um adulto e um menor de menos de 15 anos é um ataque sexual, passível de sete anos de prisão e uma multa de € 100 mil. Caso um ato sem penetração seja cometido sem o consentimento de uma vítima menor de 15 anos, o crime é qualificado de agressão sexual, que pode ser punido com dez anos de prisão e € 150 mil de multa. Já uma penetração sem consentimento de um menor de 15 anos é considerada estupro, passível de 20 anos de prisão.

"Atualmente, o dispositivo que existe questiona o comportamento da criança, já que se analisa a questão de seu consentimento. Ora, todos nós constatamos a assimetria entre uma criança e um adulto", afirma o secretário de Estado para a Infância, Adrien Taquet, ao jornal Le Parisien. Ele garante que o governo está trabalhando sobre a questão: "Não está relacionado à mobilização, mas isso traz o sentimento de que é preciso mudar as coisas, que o trabalho que estamos realizando deve continuar e se intensificar".