Topo

Depois de 50 países, Brasil vacina contra Covid-19 em clima de disputa eleitoral

18/01/2021 07h21

A Anvisa aprovou neste domingo (17) o uso emergencial de duas vacinas. Em São Paulo, o governador João Dória iniciou a vacinação minutos após o aval da agência, criticando abertamente Bolsonaro.

Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

Depois de mais de cinquenta países e em meio a uma disputa eleitoral, o Brasil começará oficialmente a vacinação na quarta-feira (20), mas com doses ainda insuficientes para atingir a cobertura total do primeiro grupo listado entre os prioritários: profissionais da saúde, idosos com mais de 75 anos, moradores de asilos e índios que, somados são cerca de 14 milhões de pessoas.

Se forem incluídos brasileiros com mais de 65, que estão no segundo grupo prioritário, são mais 12 milhões de pessoas. Até agora o governo federal tem em mãos seis milhões de unidades da Coronavac produzidas na China, sendo que cada brasileiro vai receber duas doses do imunizante.

O ministro da saúde, Eduardo Pazuello, espera trazer da Índia, nos próximos dias, dois milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca, e trabalha para importar da China os insumos necessários para elevar a produção nacional das duas vacinas. "Não é fácil. Nós temos equipes e pessoas de altíssimo nível trabalhando o tempo todo nas negociações. Diplomatas, embaixadores, negociadores para fazer com que os insumos e as vacinas cheguem de fato ao país."

A distribuição das doses aos estados, que repassarão aos municípios, começa nesta segunda-feira (18) depois da aprovação pela Anvisa, nesse domingo, do uso emergencial das vacinas Coronavac, produzida pela chinesa Sinovac em parceria com o Butantan, e do imunizante da Oxford, num acordo com a Fiocruz.

A agência sanitária brasileira disse que como não há remédios comprovados contra a Covid 19, a vacina é importante. A área técnica, entretanto, salientou que os dados dos dois laboratórios são precários em relação à eficácia para grupos específicos, como os idosos, a capacidade de evitar casos mais graves, e melhor prazo de aplicação entre a primeira e segunda doses.

"Um dos pontos envolve casos graves e moderados. Os dados não foram suficientes para permitir uma conclusão ou mostrar uma tendência de eficácia sobre formas graves e moderadas da doença. Houve poucos casos graves entre os voluntários que receberam a vacina e o grupo placebo. Teremos de acompanhar daqui a pra frente", disse Gustavo Mendes, gerente-geral de medicamentos e produtos biológicos da Anvisa, sobre a Coronavac.

Em relação ao produto da Oxford, também há incertezas, disse. "O número de adultos acima de 65 anos que participou foi pequeno para atestar a eficácia da vacina nessa população. Os anticorpos produzidos em geral foram semelhantes se comparado ao grupo de adultos jovens. Mas a presença dos anticorpos de ligação e dos neutralizantes, que são aqueles que interessam, tendeu a ser menor. É uma tendência, então a gente precisa também acompanhar melhor", explicou.

Apesar dos questionamentos, o uso dos dois produtos foi avalizado por unanimidade pela Anvisa, numa reunião em que o papel da ciência foi ressaltado. O diretor-geral do órgão, Antônio Barra Torres, disse que a vacina inaugura uma fase de esperança.

Diante da desconfiança, principalmente da parte do presidente Jair Bolsonaro, ele atestou a segurança dos imunizantes ."Confie na Anvisa, confie nas vacinas certificadas pela Anvisa". Torres, no entanto, destacou que os cuidados precisam continuar porque levará tempo ainda para que toda a população esteja protegida.  "O momento é de conscientização, união e trabalho. O inimigo é um só. A nossa chance, a nossa melhor chance nessa guerra passa obrigatoriamente pela mudança de comportamento social, sem a qual, mesmo com vacinas, a vitória não será alcançada."

Perguntado se tomaria a Coronavac chinesa, o ministro Pazuello disse que 'tomaria agora' se tivesse chegado sua vez na lista de prioritários.

Holofote eleitoral

No mesmo instante em que a Anvisa encerrava a reunião que deu aval à aplicação das doses importadas da Coronavc e da vacina de Oxford, o governador de São Paulo, João Doria, deu início a um evento transmitido pela internet para aplicação da primeira dose contra o coronavírus em solo brasileiro: Mônica Calazans, uma enfermeira negra, diabética e hipertensa. No ato simbólico foram imunizadas mais de 100 pessoas, inclusive indígenas.

João Doria, na briga direta contra Bolsonaro e de olho em 2022, apostou na parceria chinesa e não poupou críticas ao presidente. "E daí, disse um brasileiro. Pressa pra quê, disse outro brasileiro. Toma cloroquina que basta, afirmou um líder do país. Já fizemos de tudo e não há o que fazer, declarou o mesmo personagem. A vacina é uma vitória contra vocês, autoritários, que não deram a atenção necessária à saúde", provocou o governador.

Apesar do ato deste domingo, todas as doses do Instituto Butantan foram requisitadas e farão parte do Programa Nacional de Imunização, definido pelo Ministério da Saúde. Eduardo Pazuello, que falou à imprensa no mesmo horário em que Doria conduzia a cerimônia em São Paulo, criticou o governador paulista.

"O Ministério da Saúde tem em mãos neste instante as vacinas do Butantan e da AstraZeneca. Poderíamos num ato simbólico ou numa jogada de marketing iniciar a primeira dose em uma pessoa. Mas em respeito a todos os governadores, prefeitos e brasileiros, o Ministério da Saúde não fará isso. Não faremos uma jogada de marketing. Quebrar esse pacto é desprezar a igualdade entre os estados, é desprezar a lealdade federativa. Governadores, não permitam movimentos político-eleitoreiros se aproveitando da vacinação em seus estados. O nosso único objetivo é salvar vidas, e não fazer propaganda própria."

Pazuello e Doria também trocaram farpas quanto aos recursos que financiaram as vacinas. O ministro disse que as pesquisas do Butantan foram bancadas pelo SUS, que é tripartite e recebe dinheiro de municípios, estados e da União. O governador afirmou que a verba foi do estado paulista: "Não há um centavo do governo federal até agora. Chega de mentira, trabalhe pela saúde do seu povo. Seja honesto, seja decente".

Crise em Manaus

Pazuello, Doria e médicos que falaram sobre a vacina no fim de semana concordam em um ponto: se a população continuar relaxando nos cuidados contra o novo vírus, a luta será difícil mesmo com a campanha de imunização. As cenas em Manaus, capital do Amazonas, que sucumbiu pela segunda vez ao coronavírus e teve pacientes agonizando até a morte por falta de oxigênio, marcou a opinião pública nos últimos dias. 

O médico Anfremon D'Amazonas Monteiro Neto, coordenador da UTI do Hospital Universitário Getúlio Vargas, considerou um desrespeito a declaração de Bolsonaro que apontou a falta de tratamento no estágio inicial da doença como agravante da situação em Manaus. O médico disse que os pacientes, no início dos sintomas, receberam de vermífugos à corticoides e, em vários casos, até cloroquina.

D?Amazonas acredita que, além das festas de fim de ano, uma variante talvez mais forte do vírus tenha contribuído para o caos. "A doença parece muito mais agressiva, levando muito mais gente para a diálise, pegando gente mais nova, muitas vezes sem qualquer comorbidade. Manaus vive uma situação dramática. Os hospitais particulares não recebem mais gente. Se você sofrer um infarto, tiver uma crise de apêndice, você não tem para onde ir".

O ministro Pazuello esteve em Manaus três dias antes do colapso geral por falta de oxigênio e foi informado, inclusive por parentes, de que havia risco iminente de faltar o produto. A mobilização, com aviões e remanejamento de outros estados só aconteceu depois da repercussão mundial, com médicos descrevendo o desespero que viveram, sem ter o que fazer para socorrer pacientes. No Congresso já há pedidos para que ele preste esclarecimentos sobre o caso, como afirmou o senador Alessandro Vieira, do Cidadania-SE

"É urgente convocar o ministro Pazuello para que ele preste esclarecimentos não só em relação à situação trágica de Manaus, mas à falta absoluta de critérios, de previsão concreta de processo de vacinação e de entrega de insumos para que estados e municípios possam defender a saúde de seus cidadãos É um problema sério que vem sendo empurrado com a barriga e precisa ser esclarecido. E só o Congresso tem autoridade para fazer uma convocação desse tipo."

Diante de tantas falhas do governo federal na pandemia, bem como a postura assumidamente negligente do presidente da República com relação à doença, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, considera que o Legislativo uma hora terá de encarar o debate do pedido de impeachment de Bolsonaro, embora considere que, no momento, a prioridade é salvar vidas.

"Acho que esse tema é um tema que, de forma inevitável, certamente será debatido no futuro. Mas acho que, neste momento, com vidas perdidas, a gente trocar o foco do que é principal, mesmo sabendo que há uma desorganização, uma falta de comando por parte do Ministério da Saúde, o que nós precisamos de forma definitiva é que o governo federal assuma sua responsabilidade sobre a coordenação do sistema de saúde porque esse é o papel do governo federal no sistema SUS".