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Ex-potência industrial, Ohio mostra que trumpismo permanece, apesar da saída de Trump

Para Michael Gallagher, conselheiro republicano na política há 20 anos, Trump não perdeu para o democrata, perdeu para ele próprio - Saul Loeb/AFP
Para Michael Gallagher, conselheiro republicano na política há 20 anos, Trump não perdeu para o democrata, perdeu para ele próprio Imagem: Saul Loeb/AFP

Lúcia Müzell

Enviada especial a Cleveland (EUA)

19/01/2021 04h50

O presidente americano, Donald Trump, vive as últimas 24 horas de mandato, mas o trumpismo não acaba neste 19 de janeiro de 2020. Poucas regiões americanas simbolizam tão bem o sucesso do seu mantra "America First" quanto a chamada Rust Belt, no nordeste e meio-oeste dos Estados Unidos. Jóia industrial do país até os anos 1960, a extensa faixa que atravessa Estados como Pensilvânia, Indiana e Ohio sofreu os efeitos negativos da globalização e afundou em uma crise da qual até hoje ainda se recupera.

O resultado apertado das eleições americanas e a alta popularidade do presidente entre os republicanos (82%, conforme o Instituto Gallup) indicam o quanto a herança política do magnata permanece viva. Em Ohio, o candidato republicano saiu vitorioso com 53%, contra 45% para Joe Biden.

"Se não tivesse tido a covid, Trump teria vencido as eleições. A paixão que as pessoas têm pelo Trump, elas jamais terão pelo Biden", avalia Michael Gallagher, conselheiro republicano do condado de Cuyahoga, com sede em Cleveland. "Os americanos, dos dois lados, estão cansados dos mesmos políticos que vão para Washington e perdem os valores que os elegeram. Eles ficam lá, confortáveis, e parece que o trabalho deles é ser reeleitos", critica.

Para o conselheiro, na política há 20 anos, Trump não perdeu para o democrata - perdeu para ele próprio. "Eu acho que as pessoas ficavam muito desconfortáveis com o que saía da boca dele, com a maneira como isso pode parecer grosseiro. Mas na economia, Trump foi o cara que fez coisas extraordinárias que nenhum outro fez ou faria. É impossível um americano ser verdadeiramente contra o America First", ressalta.

Eleitorado urbano x rural

Ohio ilustra a profunda divisão entre o eleitorado das grandes cidades, de tendência democrata, e as zonas rurais e industriais, conservadoras e que se estimam desprestigiadas pelo poder. Essa é uma das razões pelas quais a região é um dos estados-pêndulos, que oscilam politicamente entre uma eleição e outra e podem ser decisivos na derrota de um candidato à Casa Branca.

"Eu não voto por uma personalidade, não me importo em gostar pessoalmente de um candidato ou com as opiniões pessoais dele. Eu me importo com o que ele faz, concretamente, para melhorar o país a vida das pessoas", complementa a esposa Gallagher, Sandy.

Vincent, um senhor de meia idade que complementa a renda como motorista nas madrugadas, elogia o fato de o presidente não ter "se rendido" ao lockdown para conter a pandemia de coronavírus. "Aqui está tudo aberto e Cleveland precisa que esteja. Um vírus não pode parar um país", argumenta.

Nos últimos anos, a cidade experimentou uma queda constante dos números do desemprego. Um impressionante polo médico compensou a perda das vagas nas indústrias nos anos 1980 e seguintes - e hoje é o maior empregador privado de todo o Estado.

"Desta vez, fomos republicanos. Atribuo essa vitória principalmente às questões morais, até mais do que econômicas", aponta o professor de ensino médio David, morador de Cleveland. "As pessoas aqui têm valores conservadores, contra o aborto, por menos impostos. Não são a favor da agenda progressista da esquerda."

Tensão racial

Uma dessas pautas que emergiu com força no último ano é a do combate ao racismo, como em todo o resto do país. Cleveland teve intensos protestos contra a morte de George Floyd - ocorrida pouco mais de cinco anos depois de uma criança negra, Tamir Rice, perder a vida em disparos de um policial branco, em uma praça da cidade.

"É horrível, ainda tem muito racismo aqui em Ohio. Meu marido é afroamericano e meus filhos, negros. Mas muitas pessoas não sabem disso e eu estou sempre ouvindo algum comentário que supostamente é inofensivo, mas é racista. Piadinhas, comentários preconceituosos", relata Rosana Brown, enquanto passeia com a filha Sydney no Museu do Rock-and-Roll, uma das atrações culturais que também ajudaram o município a se reerguer da crise.

"Espero que a nova administração tenha coragem de enfrentar a questão no que eu considero ser o ponto mais profundo, a polícia", avalia a eleitora de Biden.

Os amigos Franck e Lou, negros, também votaram no candidato democrata, porém demonstram um certo ceticismo sobre a capacidade de o novo presidente promover avanços nas temáticas de esquerda, neste contexto de polarização acirrada.

"Acho que os republicanos não se preocupam com os problemas dos negros, e Biden está comprometido com essa agenda. Mas precisarei ver para crer", afirma Franck, 22 anos. "Uma coisa é o discurso e a outra, os atos. A nossa esperança é que ele cumprirá a palavra", frisa Lou, 20.

Esta segunda-feira (18) era feriado em grande parte do país, em homenagem ao líder negro Martin Luther King. O diretor do museu, Greg Harris, observa que as zonas rurais ainda dão pouca importância aos temas ligados às minorias.

"Nenhuma sociedade tem sucesso enquanto todos não tiverem chance de ter sucesso. Vimos muito, no último anos, vozes bem altas dizendo que não querem que isso aconteça, mas precisa acontecer", analisa. "Se olhamos os resultados da eleição, tão apertados, vemos o quanto ainda vivemos entre dois extremos. Mas os que estão no meio precisam ser mais ouvidos, precisamos trabalhar juntos."

Neste ponto, Michael Gallagher, o conselheiro do condado, se mostra conciliador: condena veemente a invasão do Capitólio por manifestantes trumpistas, no dia 6 de janeiro e assume plenamente a presidência de Biden, a partir deste 20 de janeiro.

"Eu acredito que quando a eleição acabou, ela acabou. Não importa quem venceu, você torcerá por essa pessoa. Biden agora é o meu presidente, é o de todos os americanos", alega.

"Existe uma ambivalência entre os republicanos, entre os que querem apoiar o Trump, mas não a violência, a bagunça. Temos que lembrar que também hoje apenas 25% dos americanos se declaram republicanos, um partido que está perdendo apoio nos últimos anos", destaca o cientista político David Samuels, da Universidade de Minnesota.

Uma amostra desse racha interno foram os 10 congressistas republicanos que votaram a favor do impeachment de Trump, na semana passada. Entre eles, o deputado de Ohio Anthony González.