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Brasileira discriminada na Ópera de Paris aplaude movimento por diversidade na instituição

27/01/2021 15h19

A tradicional Ópera de Paris é uma das últimas instituições culturais de renome internacional a lançar um debate por uma maior diversidade. O movimento foi iniciado por artistas mestiços da casa que pedem "o fim da discriminação racial" na instituição tricentenária. A brasileira Thaís Sobreira, que trabalhou na Ópera de Paris e se sentiu discriminada, aplaude o movimento. A bailarina Helena Van Riemsdijk, que estuda Notação do Movimento no Conservatório Nacional de Paris, defende uma reatualização de obras do repertório clássico no lugar da cultura do cancelamento.

Os artistas mestiços da Ópera de Paris representam uma hiperminoria, a exceção que confirma a regra. Entre os 154 integrantes do corpo de baile, eles são cinco bailarinas e bailarinos, todos franceses, filhos de um pai ou mãe de origem africana.

Inspirados pelo movimento americano Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) e com o apoio de dois barítonos negros do coral da Ópera, eles resolveram dar um basta à "invisibilidade" que vivem na instituição. No segundo semestre de 2020, lançaram o manifesto "Sobre a questão racial na Ópera de Paris" que obteve o apoio imediato de 400 funcionários da casa e levou o diretor Alexander Neef a encomendar um estudo independente sobre a diversidade na instituição, que ainda não ficou pronto.

No manifesto, eles contam a singularidade que é serem os únicos artistas não brancos do corpo de baile. Eles denunciam a falta de sapatilhas, meias e maquiagem adaptadas para a cor de sua pele, as discriminações nas escolhas dos intérpretes para os papeis mais importantes, os comentários racistas e inoportunos que machucam e estigmatizam. As obras do repertório herdadas da época colonial e a prática do blackface também estão sendo questionadas.

A bailarina Letizia Galloni recorda que aos dez anos ouviu alguém dizer que ela nunca poderia entrar no balé porque era negra. Hoje, ela conquistou um lugar intermediário na companhia (que nunca teve uma primeira bailarina negra) e acredita que "a instituição tem que representar a sociedade".

A homogeneidade estética e de técnica é uma das tradições da Ópera de Paris. "Por que ter pessoas não brancas no corpo de baile quebraria essa homogeneidade?", indaga o bailarino Guillaume Diop.

"Muito mestiça para a Ópera"

"Torço pelo dia em que as pessoas serão contratadas pela sua arte e não pela cor da sua pele", declara Thaís Sobreira. Formada em balé clássico no conservatório de São Petersburgo, a carioca abandonou a dança depois de um problema no joelho e hoje é atriz e cantora. Radicada em Paris, em 2012 ela foi contratada pela Ópera de Paris para atuar na versão de Don Giovani, de Mozart, assinada pelo premiado cineasta Michael Haneke.

Ao sondar a possibilidade de trabalhar em outras produções, teve uma experiência desagradável. "Uma pessoa da área administrativa me disse que 'infelizmente, eu era muito mestiça'. Ela falou que fui contratada para esta ópera (Don Giovani) porque era uma versão moderna, com pessoas que fazem limpeza, que moram no subúrbio e, por isso, precisavam de gente de cor. Mas para outras óperas eu não servia." Thaís contou o caso para várias pessoas, inclusive para um representante do governo: "elas acharam um absurdo, mas ficaram caladas". Por isso, ela acha ótimo o movimento lançado pelos bailarinos que iniciou um diálogo sobre o tema.

Os balés de Nova York e de Londres já criaram grupos de trabalho para discutir a representação das minorias. Na França, uma das pistas apontadas seria abrir a escola de balé da Ópera de Paris, considerada muito elitista apesar de gratuita, para alunos de bairros carentes.

Repertório clássico

As reivindicações dos bailarinos para obter sapatilhas e meias adaptadas já foram atendidas. Sobre o repertório e uma maior diversidade no corpo de baile a instituição aguarda o resultado do estudo encomendado pelo diretor Alexander Neef. Mas uma frase do diretor antecipando que "algumas obras poderiam desaparecer do repertório" já provocou uma grande polêmica.

Conservadores, como os jornais Le Figaro e Valeurs Actuelles ou políticos de extrema direita, denunciam uma "ortodoxia identitária" e uma censura ao patrimônio marcado pelas escolhas estéticas das versões assinadas por Rodolf Nureyev. O genial bailarino russo dirigiu o balé da Ópera de Paris e criou versões modernas de coreografias do repertório romântico e eurocentrista do século 19. La Bayadère, que se passa na Índia e utiliza o recurso do blackface, é particularmente criticada e se teme uma cultura do cancelamento, como acontece nos Estados Unidos.

A paulista Helena Van Riemsdijk, que vive na França desde 2014, afirma que essa discussão é antiga. "Essa questão já existe há muito tempo e é uma questão sobre a reatualização das obras. Eu não acho que a proposta seja de tirar essas obras do repertório. É necessário continuar a representar ou a usar o blackface ou os clichês asiáticos? Será que a gente não pode pensar essa obra de uma maneira diferente, sem descartar, jogar tudo no lixo? Não tem como modernizar?", pergunta a estudante do Conservatório Nacional de Paris.

Lago dos Cisnes dançado só por homens

Helena adora citar como exemplo a versão do Lago dos Cisnes dançada só por homens. "A história é a mesma, ainda tem a poesia, seu valor, sua moral, o significado que a gente quer ver no Lago dos Cisnes, mas com outro simbolismo." Duas ou mais versões de um mesmo balé podem coexistir para agradar públicos diferentes.

A bailarina defende que a notação do movimento, isto é escrever a coreografia em uma partitura, pode ajudar muito. "A história da dança é só isso, são versões reatualizadas. A gente chama os solos de variações porque são variações do mesmo movimento. Querer preservar uma versão por questões históricas tudo bem, mas por questões estéticas não entendo muito", pontua Helena.