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Médica brasileira na OMS prevê pelo menos mais um ano de pandemia e critica "ingerência" no Brasil

Médica brasileira na OMS prevê pelo menos mais um ano de pandemia e critica "ingerência" no Brasil -                                 WELLINGTON LIMA/JC IMAGEM
Médica brasileira na OMS prevê pelo menos mais um ano de pandemia e critica "ingerência" no Brasil Imagem: WELLINGTON LIMA/JC IMAGEM

26/02/2021 16h50

A infectologista e professora da Universidade Federal de Goiás Cristiana Toscano é a única brasileira e sul-americana no Grupo Estratégico Internacional de Experts em Vacinas (SAGE) da Organização Mundial de Saúde (OMS). Nesta entrevista à RFI, ela fala sobre os desafios para a vacinação global e critica a gestão da crise sanitária no Brasil: "A gente tem um governo federal com ações absolutamente débeis e insuficientes desde o início da pandemia".

Seu papel na OMS é, junto com outros especialistas, de orientar a vacinação no mundo. "A ciência cumpriu o seu papel: temos muitas vacinas disponíveis e outras ainda em desenvolvimento, mas a humanidade está falhando, principalmente os políticos dos vários países e a articulação global neste sentido, para de fato garantir o acesso igualitário e que pessoas do mundo todo consigam ser vacinadas", disse.

A desigualdade no acesso às vacinas contra a Covid-19 é enorme, frisa a médica. "Temos uma diferença muito grande entre os poucos países que conseguiram ter acesso a muitas doses e vacinar rapidamente a sua população e, no outro extremo, países que sequer receberam uma dose. Então a gente tem um trabalho muito intenso e importante para tentar vacinar a população toda, do mundo todo, porque sem isso esta pandemia não vai ser superada facilmente."

Cristiana considera que o sistema Covax, que tem como objetivo proporcionar este ano vacinas contra o vírus da Covid-19 a 20% da população de países de média e baixa renda, é bom, mas não é suficiente.

"Considerando a dificuldade de oferta diante de toda a demanda do mundo por vacinas, o Covax é a única estratégia multilateral viável que está conseguindo fazer alguma coisa para suprir esta lacuna. Não é suficiente, é claro que ainda vai haver lacunas, mas pelo menos através do Covax, está garantido que 20% da população de países de baixa renda vão até o final deste ano receber vacinas para esta parte de sua população", diz.

"É o suficiente? Não. É o ideal? Não. Mas é o possível neste momento", completa, apelando para que os países que tenham recursos e que possam participar como autofinanciáveis se juntem ao Covax e apoiem esta iniciativa.

Brasil e seu histórico de sucesso em vacinação

A médica cita "histórico muito longo de sucesso em atividades de vacinação" do Brasil: "A gente tem o Programa Nacional de Vacinação (PNI), que é considerado historicamente um dos programas mais fortes do mundo, a gente tem a capacidade de vacinar mais de 1 milhão de pessoas por dia - e isso já foi feito em campanhas passadas - e a gente tem dois dos mais importantes produtores nacionais de vacina, que são o Instituto Butantan e a Bio-Manguinhos, na Fiocruz, que produzem 75% das mais de 300 milhões de doses que são administradas no país por ano, no programa de rotina".

No caso da vacina para a Covid-19, Cristiana lembra que o país tem vacinas produzidas por estas duas instituições, em parcerias: o Butantan com a Sinovac, tem a Coronavac, e a Fiocruz com a Oxford tem a vacina da AstraZeneca, que estão sendo lentamente disponibilizadas ao longo do ano.

Mas é só isso e está longe de ser suficiente, aponta. "A gente vai ter um pouco de vacinas pelo Covax - o Brasil foi um dos signatários tardios, com uma cota de 10% e a gente deve receber 45 milhões de doses para este primeiro semestre, mas a gente tem uma falta total de coordenação. Temos uma ingerência política, um não uso das evidências científicas e das informações epidemiológicas para orientar a população, para tomaras decisões e para fazer a mobilização social para a vacinação", lamenta.

"A gente tem um governo federal com ações absolutamente débeis e insuficientes desde o início da pandemia, que está deixando um vácuo importante e que agora está tentando ser suprido por iniciativas de outros poderes, o que gera uma grande confusão e um grande problema para de fato sermos eficientes na vacinação como sempre fomos. Então eu vejo com bastante tristeza e com bastante preocupação este momento, que eu considero crítico hoje, da pandemia e de sua gestão aqui no Brasil", aponta.

Mais um ano na corda-bamba

"Infelizmente eu acho que vamos passar mais um ano de pandemia", analisa a médica, por conta dos atrasos na vacinação e das novas variantes.

"As variantes, que já eram esperadas, estão evoluindo no sentido de tornar o vírus mais eficiente, no sentido de maior contagiosidade, é uma tentativa de escape da proteção, da resposta imune, tanto a conferida por infecção prévia tanto a conferida por vacinação", explica.

O monitoramento constante destas variantes através de vigilância genómica é fundamental, lembra ela. "E este é um outro grande lapso aqui no país, a gente tem muito pouca informação e muito pouco monitoramento do que está acontecendo em relação às variantes do Brasil, inclusive a de Manaus, que é tão importante. Além disso, a gente tem, como no mundo inteiro, e talvez um pouco piorado aqui no Brasil este atraso na entrega das vacinas, porque a gente depende da entrega internacional dos ingredientes farmacêuticos ativos (IFA), que vêm da China ou da índia. O Brasil faz o envase e a formulação final das vacinas. A gente fica um pouco à mercê deste cronograma da chegada de IFA e este problema não deve ser sanado tao rapidamente", analisa.

Grupos de trabalho na OMS

Cristiana conta que, no SAGE, os experts em vacinas do mundo se reunem em subgrupos quase quatro vezes por semanas para fazerem recomendações específicas para cada vacina que vai sendo registrada no mundo. "Já fizemos publicações sobre as da Pfizer, Moderna e Oxford/AstraZeneca e agora estamos trabalhando com Sinofarm, Sinovac e Jansem. Devemos publicar as recomendações e estratégias de vacinação para estas nas próximas três semanas."

"É uma honra muito grande poder participar deste grupo. Eu fui convidada a trabalhar quando ele foi estruturado, no ano passado. Trata-se de um grupo de trabalho para vacinas anticovid que tem o papel de elaborar recomendações de estratégias e políticas de vacinação para a vacina contra a Covid no mundo", define.

O trabalho do SAGE é complementar ao trabalho de agências regulatórias e da pré-qualificação de vacinas "porque não é uma avaliação para registro".

"Além de considerar dados de evidências dos ensaios clínicos, a gente considera evidências de sistemas de vigilância, de modelagens do avanço da doença e de outras evidências científicas para definir e orientar como deve ser feita a vacinação, qual o intervalo entre as doses em situações de escassez, quais os grupos prioritários, o que fazer quando se perde uma dose no tempo hábil... são questões operacionais e práticas que têm uma importância muito grande para uma vacinação bem sucedida", finaliza.