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"Brasil vive apagão de gestão e Congresso, um apagão democrático", diz cientista política

Especialista afirma que votar emenda à Constituição sem passar por comissões é atropelo e que trabalho remoto tem levado o legislativo a um apagão democrático - Antônio Cruz/Agência Brasil
Especialista afirma que votar emenda à Constituição sem passar por comissões é atropelo e que trabalho remoto tem levado o legislativo a um apagão democrático Imagem: Antônio Cruz/Agência Brasil

Raquel Miura

01/03/2021 13h21

A cientista política Graziella Testa, da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), conversou com a RFI e analisou a tentativa da Câmara de mudar a regra de prisão de parlamentar em meio à pandemia. Para ela, a população é "como capim na briga entre dois elefantes", o Legislativo e STF.

Quando o Brasil chegava à triste cifra de 250 mil mortos pelo novo coronavírus, seus habitantes assistiam estupefatos à tentativa da Câmara de aprovar uma proposta que alterava a prisão de parlamentares. Após varar a madrugada debatendo o assunto, a casa legislativa recuou em meio à pressão: vai criar um grupo para apreciar a proposta com mais tempo, mas a iniciativa da semana passada, advinda da prisão do deputado Daniel Silveira (PSL/RJ), mostrou que mesmo no caos sanitário o eleitor não pode tirar o olho de seus eleitos.

"Esse ponto é fundamental. Olhar e acompanhar de perto é muito importante. Não existe accountability sem transparência. E não adianta ter transparência se não tiver visibilidade. E se os olhos estão voltados para outro lado, é difícil que chegue até a população. E sem essa pressão, realmente, talvez esse projeto já tivesse passado. Houve uma resposta rápida dos veículos de comunicação", diz a cientista política.

Graziella Testa afirma que votar uma emenda à Constituição sem passar por comissões é um atropelo e que o trabalho remoto, concentrado apenas nas votações em Plenário, tem levado o legislativo a um apagão democrático: "O nosso Parlamento teve uma resposta técnica muito rápida no início da pandemia, em abril do ano passado, e foi um dos primeiros do mundo a continuar funcionando. A gente tinha tecnologia pronta. Mas depois disso não se fez nenhum esforço no sentido de abrir o resto da Casa", analisa.

"Só o plenário está funcionando no sistema de votação remota. Isso é um problema, porque o plenário, costumo falar, é a arena das lideranças. Não há espaço para voz. Há espaço para o voto de todos, mas a voz é das lideranças e o voto é orientado. Então é uma arena altamente centralizada nas lideranças e no presidente. E tem que ser assim, porque coordenar 513 pessoas é impossível realmente. Mas é por isso que existe outro espaço, onde há uma apreciação mais técnica, que insere mais a sociedade civil, na arena das comissões. E essa arena está completamente fora do ar. Há um apagão democrático. Isso é muito sério. Não está se fazendo nenhum esforço para alterar isso. A única comissão que foi instaurada foi o Conselho de Ética e por conta dessa ação do STF", acrescenta.

Apologia à ditadura

O deputado Daniel Silveira atacou com palavras ministros do Supremo Tribunal Federal e invocou o AI-5, braço mais cruel da ditadura militar. Acabou preso por determinação do ministro Alexandre de Moraes, confirmada pelos demais integrantes da corte. A Câmara manteve a prisão, mas usou o caso como mote para tentar mudar as regras sobre detenção de parlamentar. A professora da FGV diz que, no mundo ideal, a postura de Silveira já teria sido cerceada muito antes.

"Já haveria a punição para alguém que se coloca tão flagrantemente contra a democracia num momento muito anterior, antes de chegar onde se chegou. Já no momento eleitoral, isso não poderia ser discutido. No mundo ideal a quebra de decoro já deveria ter sido julgada quando essa conversa começou no Congresso. Parte do que está acontecendo agora vem disso, de não ter sido apreciado no momento em que deveria", explica Graziella Testa.

"A primeira vez que o parlamentar começou a defender instituições e agentes não democráticos, isso deveria ter sido punido pelo próprio Legislativo. Isso que me deixa mais chateada, pois sou uma defensora do Legislativo, estudo isso todos os dias, acompanho os trabalhos e digo que não é interessante que o Judiciário fique intervindo no Legislativo. Mas o Legislativo precisa se autorregular. Ele não pode ficar, usando uma expressão da moda hoje, 'passando pano' nos seus. Ele precisa se regular de uma forma que seja razoável para quem o elegeu. Isso que a gente espera e não essa sensação de que o Congresso se auto-protege", complementa.

STF x Congresso

A analista afirma que o caso foi um embate claro entre os dois poderes, Legislativo e Judiciário. "Essa necessidade da celeridade é sobretudo um recado para o Supremo. O Supremo que, por sua vez, já tinha mandado seu recado para o Legislativo. Então a sensação que fica é aquela história: em intriga de elefante, o mais prejudicado é o capim. Quando eu fiz Ciência Política na Universidade de Brasília tinha uma placa com essa frase. Fica a sociedade assistindo perplexa, enquanto os dois poderes se digladiam para decidir quem vai dar a última palavra. Isso é sério e ainda mais para o Legislativo, que precisa de voto e que já vive uma crise de deslegitimação. É dolorido porque ainda é nossa maior instituição democrática."

Graziella Testa diz essa reação do Congresso e do STF, com tamanha rapidez de ambos os lados, não se vê na análise de outros assuntos tão importantes hoje no país.

"Tem uma briga de foice que tem mais a ver com poder do que com política pública, do que com resultados para a população e com prioridades. Independentemente do teor da proposta, ainda que fosse uma proposta muito boa sobre qualquer tema, na semana passada nós chegamos a 250 mil mortos. Tivemos o dia com mais mortes da pandemia. Não é que está melhorando. Não está passando como está passando em outros lugares do mundo. Está só subindo o número de contágios, de mortes. E está faltando atitude, alguém que tome a frente, que tome as rédeas, que veja isso como um problema grave, que sinta pela população o que a população está sentindo, perdendo seus entes queridos, não podendo pagar as suas contas. É o capim. Nesse sentido, é isso mesmo, a sociedade brasileira é o capim que está vendo a briga dos elefantes", finaliza a cientista política.