Topo

"Abuso Lei de Segurança Nacional pode levar ao descrédito das instituições democráticas no Brasil", diz jurista

23/03/2021 14h31

Fernando Reis, advogado e professor de Direito Processual Penal na Universidade Cândido Mendes, afirma que inquéritos abertos sob a justificativa de defender a honra de quem está no poder afrontam a Constituição e ferem o principal pilar da democracia, que é o direito do cidadão se manifestar politicamente

Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

A Lei de Segurança Nacional foi criada em 1983, durante a Ditadura Militar, e está no centro de um debate caloroso por ter embasado investigações de cunho político, com nítidos traços autoritários. Em 2020 foram 51 inquéritos instaurados tendo tal legislação como âncora, alguns por iniciativa do ministro da Justiça, André Mendonça, a partir de críticas dirigidas ao presidente Jair Bolsonaro, como artigos jornalísticos que retratam o presidente como genocida pelas atitudes negacionistas durante a pandemia do coronavírus. Em 2019 foram 26 investigações abertas nessa linha pela Polícia Federal. No ano anterior, 2018, quando Bolsonaro ainda não era presidente, foram 19. Em 2017, foram cinco, em 2016, foram sete e, em 2015, treze inquéritos.

"Esse uso crescente da Lei de Segurança Nacional para justificar investigação contra quem critica uma autoridade já nos coloca no limiar de algo que talvez não seja mais uma democracia tão sólida. O risco mais iminente que existe é com a credibilidade das instituições. Quando há decisões do Supremo Tribunal Federal que são contraditórias, quando o Poder Executivo abusa dessa lei e o Judiciário tem de intervir, isso dá a impressão para a população de que as instituições não funcionam de acordo com a lei, mas que elas funcionam de acordo com a vontade política de A, B ou C. Isso sim é muito grave, porque uma democracia funciona quando as pessoas acreditam nas instituições democráticas. E o que isso pode causar é imponderável", alerta o especialista em Direito.

Fernando Reis diz que é preciso haver freios na abertura desses inquéritos. "Nós podemos ter uma revolução armada, o que eu não acredito, mas a gente pode ter também um quadro de desobediência civil, como a gente já está vivendo. A gente já vê hoje, por exemplo, no caso da pandemia, que diante de tantas decisões, cada uma num sentido, a população não quer seguir as regras. A gente já vê uma certa desobediência civil nas ruas quanto ao respeito às normas de isolamento social."

Genocida é expressão retórica

Cartazes com críticas endereçados a Bolsonaro levaram a Polícia Militar de Brasília a prender um grupo de manifestantes semana passada. A polícia civil no Rio de Janeiro chegou a intimar um youtuber por também atacar com palavras o presidente. Os dois casos não foram para frente, até porque a responsabilidade por esse tipo de apuração é da Polícia Federal. Porém, eles reforçaram o debate ao mostrar a banalização do uso da Lei de Segurança Nacional, que serviu de pano de fundo para as duas polícias.

"O jornalista jamais pratica crime contra a honra, porque é da natureza da profissão que ele seja imune no exercício da sua função a qualquer coerção. Essa lei de segurança parece que foi ressuscitada numa espécie de cinismo das autoridades porque elas sabem que não se pode enquadrar uma pessoa como estão fazendo. Em nenhum lugar do mundo se emprega uma lei para criminalizar a crítica, o protesto contra uma autoridade. A expressão genocida é inclusive uma expressão retórica usada no contexto de indignação das pessoas ao que está acontecendo. Ainda que o presidente discorde, ainda que isso possa não ser verdade, há aí uma expressão livre de pensamento, e não um ato contra a segurança nacional. Essas coisas não podem ser confundidas. E também nesse sentido acho que o Supremo Tribunal Federal contribuiu para o que estamos vendo ao utilizar instrumentos da Lei de Segurança Nacional com vistas a tutelar a honra de ministros da corte", analisa Fernando Reis.

O professor de Direito traz o STF para o debate expondo um novelo complicado que terá de ser desenrolado pelo próprio tribunal: o inquérito das fake news, aberto há dois anos pela Suprema Corte para investigar notícias supostamente falsas que atacavam seus ministros, teve por base justamente a Lei de Segurança Nacional, que está sendo questionada por partidos políticos, o que exigirá em breve um posicionamento do STF.

Caixa de pandora

"Parece que o Supremo abriu uma espécie de uma caixa de pandora. Talvez para tratar um problema que precisa ser tratado, enfrentado com dureza pelas instituições, que é o problema das fake news. Há uma grande questão aí: até que ponto você pode ter liberdade de expressão para defender o fim do Estado democrático de direito? A gente via isso aí, [com] pessoas que defendiam abertamente um rompimento com a institucionalidade, [em] um ataque às instituições. É claro que o Congresso precisa debater isso, precisa haver um tratamento normativo para algo que é novo. As fake news têm impacto muito relevante no processe político hoje. Infelizmente não temos o arcabouço normativo adequado para tratar das fake news. Não pode ser uma lei de 1983 que vai ser adequada para resolver um problema contemporâneo. Eu acho que o Supremo, como todo órgão, erra. E às vezes erra até querendo acertar. E agora terá que examinar ao mesmo tempo a legalidade desses atos que foram praticados pelo Poder Executivo, e indiretamente a legalidade dos seus próprios atos. Aguardamos ansiosos pelo resultado".

Seja o uso da lei pelo presidente Bolsonaro, seja pelo STF, o jurista diz que não tem como colocar em degrau superior a honra de autoridades, pois isso fere princípio básico da Constituição: "Isso me preocupa, no primeiro plano, porque numa democracia não existe ninguém com honra mais especial, mais qualificada que outra pessoa. Todos nós somos iguais. A criminalização da ofensa à honra não pode privilegiar a ofensa a uma autoridade pública. Além disso, a Constituição claramente protege o direito à liberdade de expressão. Então jamais poderia se utilizar uma lei como essa para restringir a liberdade de expressão, especialmente porque a liberdade de expressão é o meio pelo qual nós conseguimos exercer nosso direito político mais importante, o de interferir nos manifestando no processo político."

O professor, no entanto, pondera que nem todos os artigos da Lei ofendem a Carta Magna e a expectativa é de que o STF faça um filtro na legislação. "A lei como um todo não é inconstitucional. A Lei de Segurança Nacional trata, por exemplo, de ações de grupos armados contra os poderes públicos. Isso é natural que seja preservado. Ela regula uma situação absolutamente excepcional, não rotineira. Então o atentado contra a manutenção das instituições democráticas precisa obviamente ser resguardada com uma lei específica. O que me parece gerar polêmica é que ela tem sido utilizada para a tutela das pessoas. A pessoa do Bolsonaro, a pessoa do ministro do Supremo, quanto na verdade ela deve proteger as instituições."