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O Vaticano se opõe a projeto de lei contra a homofobia e a postura provoca grande polêmica no país

25/06/2021 07h50

O Vaticano virou alvo de críticas na Itália após ter enviado uma nota verbal à embaixada italiana na Santa Sé pedindo alterações no projeto de lei contra a homofobia e transfobia. Na quinta-feira (24), o Secretário de Estado da Santa Sé, Pietro Parolin, negou ter pedido para bloquear o texto legislativo. Ele disse que "A Itália é um Estado laico". No entanto, a polêmica continua.

Gina Marques, correspondente na Itália

No dia 17 de junho, o Secretário para as Relações com os Estados, Paul Richard Gallagher, entregou uma nota verbal à Embaixada da Itália junto à Santa Sé exigindo mudanças no projeto de lei que criminaliza a homofobia e a transfobia. O documento foi revelado em 22 de junho pelo jornal Corriere della Sera. Nessa nota, o Vaticano afirma que o texto legislativo viola princípios da Igreja Católica de exercício do culto, de liberdade de expressão concedida aos fiéis e às associações católicas.

Na Itália, muitos consideraram essa carta diplomática do Vaticano como uma interferência. O primeiro-ministro italiano Mario Draghi disse em uma sessão do Senado que "a Itália é um Estado laico e que seu Parlamento é soberano".

Diante de tantas críticas, o Secretário de Estado da Santa Sé, Pietro Parolin, que ocupa o cargo mais importante na hierarquia do Vaticano depois do Papa, entrou em campo para justificar. Ele disse que o conceito de "discriminação é muito vago" e que "tratava-se de um documento interno, trocado entre governos por via diplomática. Um texto escrito e pensado para comunicar algumas preocupações e não para ser publicado". Parolin acrescentou que, para o Vaticano, "a liberdade religiosa, liberdade de expressão e ensino são essenciais".

O projeto de lei que incomoda o Vaticano

O texto legislativo, aprovado pela Câmara dos Deputados e que tramita no Senado, prevê penalidades para manifestações discriminatórias contra a homofobia e transfobia. As penas podem chegar a 4 anos de prisão. 

Segundo o Vaticano, caso seja aprovada, essa lei poderia interferir na liberdade religiosa dos católicos. Além disso, viola alguns pontos chave do tratado que regula as relações entre a Santa Sé e a Itália, a concordata que foi assinada em 1929 com o ditador fascista Benito Mussolini e renovada em 1984.

O projeto de lei também não isenta as escolas católicas italianas da obrigação de participar de atividades relacionadas ao Dia Nacional contra a Homofobia, que seria estabelecido no dia 17 de maio.

O deputado Alessandro Zan, do Partido Democrático, de centro-esquerda, e promotor do projeto, garantiu que o texto "não limita de forma alguma a liberdade de expressão, nem a liberdade religiosa, e respeita a autonomia de todas as escolas".

Ao contrário do que muitos opositores temem, o texto legislativo estabelece que um padre poderá continuar a fazer campanha contra a igualdade de direitos entre casais do mesmo sexo e os casais heterossexuais. Haveria penalidade legal só se o sacerdote instigasse seus seguidores a assediar ou linchar um casal homossexual ou transsexual.

Um pedido sem precedentes

A Conferência Episcopal Italiana (CEI) normalmente entra no debate político no país, mas a inédita ingerência do Vaticano no assunto abalou a política da Itália, engajada há meses na luta para avançar com essa norma exigida por grupos LGTBIQ+.

Os partidos de direita são contrários à aprovação da lei. Segundo eles, no Código Penal italiano já existe punição para violência ou discriminação contra uma pessoa, portanto não há necessidade de especificar se é homossexual ou transsexual.  

Para muitos analistas políticos, depois da intervenção do Vaticano, a chamada "Lei Zan" encontrará muitas dificuldades para ser aprovada no Senado.

Papa Francisco sabia da nota verbal

A imprensa italiana questionou se o Papa Francisco tinha conhecimento da nota verbal. O Secretário de Estado Pietro Parolin respondeu que "o princípio é que os superiores estejam sempre informados de tudo o que se faz".

Portanto, o papa Francisco sabia.

Francisco é conhecido pelas posições progressistas e pela abertura à questão dos homossexuais. Em 29 de julho de 2013, durante a coletiva de imprensa concedida aos jornalistas que o acompanhavam no voo de volta à Itália depois da visita de uma semana ao Brasil para celebrar a Jornada Mundial da Juventude, o papa disse:

"Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?".

Em janeiro de 2015, o papa Francisco recebeu, em audiência privada, o transsexual espanhol Diego Neria Lejarraga e sua namorada. O encontro teria ocorrido após o espanhol ter enviado cartas ao pontífice para contar que estava sendo excluído de sua paróquia após ter feito a cirurgia de mudança de sexo feminino para o masculino.

Em março do mesmo ano, durante a cerimônia no cárcere de Rebbibia, em Roma, Francisco lavou os pés de Isabel, uma transsexual brasileira detida.

No entanto, em março de 2021 o Vaticano pediu que os padres não abençoassem os casais do mesmo sexo. A Congregação para a Doutrina da Fé declarou: "não é uma discriminação injusta e nem julgamento sobre as pessoas".

Segundo essa declaração, Igreja não tem o poder de conceder a bênção às uniões entre pessoas do mesmo sexo, que não podem, portanto, "ser consideradas lícitas". O papa foi informado e "deu seu consentimento" à publicação da decisão e da nota explicativa que a acompanha, assinada pelo prefeito da Congregação, o cardeal Luis Ladaria, e pelo secretário da Congregação, o arcebispo Giacomo Morandi.