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Brasil vive "paroxismo da intolerância" diz Patrícia Melo que lança novo livro na França

28/07/2021 14h26

Patrícia Melo é uma das escritoras brasileiras contemporâneas de maior visibilidade no exterior, com traduções de seus 12 livros em várias línguas. Na França, "Gogue Magogue", que acaba de chegar às livrarias pela editora Actes Sud, é o nono romance da autora paulista traduzido para o francês.

A trama de "Gogue Magogue" ("Gog Magog", em francês, com tradução de Vitalie Lemerre e Eliana Machado) é colocada desde a primeira frase do livro. "Jamais entendi porque o ruído não é considerado um tipo eficiente de arma branca", diz o personagem principal, um pacato professor de biologia que acaba matando o vizinho barulhento do andar de cima. Como em outros livros de Patrícia Melo, o romance denuncia com uma linguagem afiada e irônica a violência estrutural e urbana da sociedade brasileira. 

A autora de sucesso e critica tem 12 livros publicados no Brasil, entre eles "O Matador" e o "Inferno", prêmio Jabuti em 2001. Patrícia Melo vive atualmente na Suíça e nesta entrevista à RFI diz que "Gogue Magogue" mostra o "paroxismo da intolerância que é bem característica" do momento atual brasileiro.

Por que a escolha do nome "Gogue Magogue", que são personagens bíblicos, como título?

Patrícia Melo: É uma referência bíblica ao embate final entre o bem e o mal do fim do mundo, onde já não é mais possível o diálogo. É o paroxismo da intolerância que é bem característica da nossa época. É uma referência a esse momento onde não é mais possível o entendimento, de duas forças muito opostas se digladiando.

O silêncio é um luxo e o barulho é uma arma eficaz na sociedade contemporânea, como você aborda no livro?

PM: Tem outras questões envolvidas, mas o que me levou escrever esse romance foi essa percepção de que a gente vive no momento em que o silêncio foi completamente liquidado. Eu lembro sempre daquela frase do Schopenhauer (Arthur Schopenhauer, filósofo alemão) de que 'o barulho é a tortura do homem que pensa'. Ele escreveu isso em meados do século 19, quando ainda havia silêncio. Hoje, basicamente, em nenhum espaço que você entra, restaurante, elevador ou supermercado, em nenhum lugar existe silêncio. Aliás, ele existe, mas você tem que pagar por ele. Passou a ser um artigo luxuoso da sociedade contemporânea.

Com essa dicotomia, você denuncia também as desigualdades e choques atuais na sociedade brasileira, choques de classe, de cultura, de religião...

PM: Eu não queria fazer um olhar assim específico sobre a questão do barulho. Eu queria fazer uma coisa maior e mostrar aquele momento da sociedade brasileira. Eu lancei o livro em 2017 no momento em que você percebia a sociedade muito dividida, uma intolerância enorme lado a lado, o pais muito cindido que acabou resultando nesse momento que a gente esta vivendo hoje. Era muito no que dizia respeito às posições políticas, ideológicas, religiosas, científicas... tudo levado a um desentendimento total. Há uma espécie fetiche dos meus direitos na composição dessa trama. Aquele momento da nossa cultura que eu descrevi no Gogue Magogue fala quase que: eu defendo os meus direitos, você tem que respeitá-los ou eu sou obrigado a te matar. Era um pouco essa intolerância, muito típica desse momento, que eu queria mostrar.

O personagem principal, que é o narrador e aliás não é nomeado, não reconhece seu crime. Essa alienação lembra o "Estrangeiro" de Albert Camus. Foi uma referência?

PM: O Camus não é uma referência nesse livro, mas na minha vida ele foi um dos autores que mais me ensinou essa técnica de composição de personagem. No Gogue Magogue, tem similaridades essa falta de compreensão da própria realidade. O que difere, é essa consciência rigorosa dos direitos constitucionais do personagem. Ele é totalmente consciente dos seus direitos, mas numa visão completamente distorcida. Existe muito isso no Brasil, essa visão distorcida do que significa os meus direitos que passaram por um processo de fetichizaçao. Isso não tem na narrativa do Camus.

Este parece ser o seu romance que mais cita fatos da atualidade, datando a história em um tempo preciso. Concorda?

PM: Depois de Gogue Magogue lancei Mulheres Empilhadas, que fala do feminicídio, dessa matança de mulheres que ocorre hoje no Brasil. Mas acho que você tem razão. Tentei fazer um panorama, um grande retrato da sociedade brasileira pré-Bolsonaro que acabou levando à eleição do Bolsonaro.

Um retrato assustador?

PM: Assustador, como é o momento que a gente vive. É assustador tudo que está acontecendo hoje no Brasil.

Você questiona um pouco a classificação que fazem de sua obra como sendo romance policial, e prefere o termo ficção urbana. O gênero "roman noir" francês, que engloba o romance policial mas também um olhar sobre a sociedade, seria mais adaptado?

PM: As fronteiras do romance policial se alargaram tanto. Hoje, qualquer romance que trate da realidade urbana pode ser considerado romance policial. Eu tinha muito resistência a isso porque achava até que havia uma definição muito clara do que era o romance policial. Eu achava até que era uma falta de conhecimento do que era a literatura policial. Hoje, eu não me importo mais de ser taxada assim porque acho virou uma classificação onde cabe tudo. Na verdade, eu acho que é uma literatura urbana. Eu não gosto de me definir, mas se eu tiver que me definir eu sou uma autora muito preocupada com o Brasil, com as questões contemporâneas do meu Brasil e são temáticas urbanas, porque a nossa vivência hoje é urbana como um todo. É sempre complicado. O autor sempre se incomoda um pouco com essas classificações. A gente sempre tenta fugir delas. No fundo, elas acabam sendo prisões.

Você se considera uma autora engajada?

PM: Acho que sim. Eu acho que eu sou uma autora engajada e eu acho que é um momento importante da gente ter esse engajamento. Não só pela pandemia, mas eu digo também pela questão política que o Brasil enfrenta com esse governo anticientífico, com tendência autoritária, com essa perda das nossas liberdades que está sendo cada vez mais visível. É importante esse engajamento. Eu me sinto bastante comprometida no sentido de fazer minha literatura dentro desse espaço de resistência.

Você mora atualmente na Suíça. Como você faz para continuar mergulhando na sociedade brasileira a ponto de fazer uma denúncia afiada como esta?

PM: O autor é, como dizia Martin Hengel, o autor é sempre um espião. Eu continuo como uma espiã. Olhando o Brasil de longe, de fora, me dá até uma certa vantagem nessa observação. A gente vivendo lá, a gente se acostuma com um nível de violência na sua vida. Quando você se retira, você vê o quanto ela é inaceitável. (No Brasil) ela acaba sendo naturalizada pela própria sociedade. O fato de eu estar aqui fora, me dá novos recursos para a minha literatura e eu tento usá-los todos.