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Bruxelas, berço da art nouveau, revela seus tesouros

02/09/2021 11h09

Cinquenta anos antes do arquiteto Oscar Niemeyer dobrar o concreto e mostrar ao mundo as linhas curvas da Igreja de São Francisco de Assis, na Pampulha, outro gênio da arquitetura, o belga Victor Horta, inovava dando movimento ao ferro com formas inspiradas na natureza, criando assim o estilo Art Nouveau. Ambos visionários que transformaram o concreto e o ferro em obras notáveis da arquitetura entre o final do século 19 e o século 20.

Letícia Fonseca-Sourander, correspondente da RFI em Bruxelas

A Bruxelas de Victor Horta era elegante. A nova burguesia que havia se enriquecido graças à indústria e ao comércio se instalava nas grandes avenidas arborizadas da capital de um país recém-criado. E a Art Nouveau assinada por Horta oferecia mais do que um projeto arquitetônico, ela proporcionava a bela opção de morar dentro de uma obra de arte única.

A Europa do final do século 19 vivia um momento de grande otimismo e paz. Era com este estado de espírito que as pessoas deram as boas-vindas aos avanços tecnológicos e científicos, às transformações urbanísticas, ao aparecimento do cinema e à Art Nouveau com suas formas curvilíneas. A Exposição Universal de Paris, em 1889, simbolizou com grande ênfase a modernidade de novos tempos prestes a nascer.

Na época, o engenheiro francês Gustave Eiffel impressionou o mundo inteiro com a concepção audaciosa de sua torre em ferro cheia de formas e curvas. A Torre Eiffel se transformava assim em símbolo da França no imaginário coletivo. E é nesta Paris da Belle Époque, que Victor Horta desembarca aos dezessete anos, em Montmartre, para fazer um estágio no ateliê do arquiteto de interiores, Jules Dubuysson.

Além do charme e da douceur de vivre parisienses, Horta descobria, e sobretudo observava, os últimos movimentos artísticos: o impressionismo e o pontilhismo, assim como os novos materiais de construção: o ferro e o vidro. Em suas memórias, Victor Horta escreveu: "Minha estada em Paris, as caminhadas, as visitas aos museus abriram as portas do meu coração de artista. Nenhuma escola teria conseguido me ensinar melhor o entusiasmo da arquitetura, que permanecerá para sempre".

As duas maiores fontes inspiradoras de Horta foram o arquiteto belga Alphonse Balat, autor das estufas reais, as Serres de Laeken, com quem estagiou e o francês Eugène Viollet-le-Duc, que restaurou a Catedral de Notre-Dame de Paris e é considerado precursor teórico da arquitetura moderna.

"Horta lê com atenção o livro "Conversas sobre Arquitetura" escrito por Viollet-le-Duc. Nele, o arquiteto francês diz que é preciso ser honesto. É preciso que a fachada exprima o destino do prédio. É preciso que quando utilizamos o metal, nós o deixemos aparente", explica o curador do Museu Horta, Benjamin Zürstrassen à RFI Brasil. "A mesma coisa vale para o ornamento. É preciso que a decoração seja como a pele sobre o esqueleto da casa, e o esqueleto é a arquitetura", comenta.

"Viollet-le-Duc também diz que é preciso pensar como um construtor de catedral que observa a flora, flores e árvores do terreno antes de erguer seu projeto. Faça o mesmo, olhe a natureza, ensinava. O objetivo de Le-Duc era o de renovar a arquitetura do século 19, que olhava em direção ao passado. E o que Horta vai fazer? Ele vai utilizar estes ensinamentos para criar uma arquitetura inédita", ressalta Zürstrassen.

Obra fundadora da Art Nouveau

A Europa vivia os desdobramentos da Revolução Industrial e a substituição das ferramentas, da arte genuína e da liberdade criativa pelas máquinas e pela produção em massa. Foi justamente neste contexto que a Art Nouveau surgiu como uma reação ao medo da industrialização. Suas raízes vieram do movimento Arts and Crafts, nascido na Grã-Bretanha, na segunda metade do século 19. O Arts and Crafts, assim como a Art Nouveau, valorizava o retorno ao trabalho artesanal e a criação de belos objetos decorativos.

Para os historiadores da arte, o Hôtel Tassel, construído em 1893, em Bruxelas, é a obra inaugural da Art Nouveau na Europa. É onde Victor Horta mostra pela primeira vez as ideias inovadoras que irão nortear sua carreira de arquiteto: o plano aberto, o ferro aparente, o arabesco, a fluidez do espaço organizado ao redor do hall de entrada e da escada cobertos por um vitral, o jogo entre luz e sombra, as tonalidades das cores, a decoração totalmente integrada à estrutura da casa.

Na residência de Émile Tassel, professor de geometria da Universidade Livre de Bruxelas e amigo de Horta, o arquiteto belga faz uma pequena revolução e rompe totalmente com o arranjo clássico das casas em Bruxelas. A porta de entrada passa a ocupar o centro da fachada e o eixo central é coberto por um teto de vidro para que a luz entre e circule por todos os ambientes.

É no Hôtel Tassel que Horta explora com audácia o dualismo dos materiais, os contrastes entre as pedras e o metal. Para embelezar os pontos de luz da casa, ele desenha lustres com lâmpadas aparentes se inspirando na natureza. Suas criações giram sempre ao redor de temas orgânicos. Na imaginação do arquiteto, caminhar pelo interior da casa deveria corresponder à mesma sensação de um passeio em um parque ou jardim.

Audácia e perfeccionismo

Victor Horta viveu e trabalhou durante quase toda a sua vida no bairro de Saint-Gilles, em Bruxelas. Arquiteto, designer de interiores e mobílias, Horta era conhecido pelo seu perfeccionismo absurdo e temperamento irascível. Um paradoxo em relação à beleza de suas criações. Antigos funcionários contam que ele verificava a todo instante cada detalhe dos desenhos feitos pelos projetistas e as peças confeccionadas pelos artesãos.  Extremamente exigente, Horta costumava se trancar em seu ateliê durante toda a noite para trabalhar e adorava encontrar soluções para problemas difíceis.

Horta nasceu em Gand, região flamenga da Bélgica, e aos 20 anos, recém-casado, se mudou para Bruxelas. Na infância, nunca conseguiu se adaptar aos rígidos padrões das escolas e era frequentemente expulso. Mais tarde, entrou na Academia Real de Belas Artes de Bruxelas, onde se revelou um aluno excepcional. Foi assistente de seu professor Alphonse Balat, arquiteto do rei Leopold II. No entanto, o rei nunca admirou a Art Nouveau, e muito menos o espírito inovador de Horta.

Aos 27 anos, Victor Horta entra para a Loja Maçônica dos Amigos Filantropos e encontra seus primeiros clientes, Eugène Autrique, Emile Tassel e Max Hallet. Aliás, a maçonaria exerceu um papel fundamental para a Art Nouveau na Bélgica. Sem o apoio dos amigos maçons, mais da metade das obras projetadas por Horta não teria sido erguida. O simbolismo e os rituais da organização serviram de fonte de inspiração para o arquiteto durante toda a sua carreira.

Os Amigos Filantropos eram considerados avant-garde, responsável pela criação da Universidade Livre de Bruxelas, da primeira escola para meninas Gatti de Gamond e defendiam o voto universal. É a partir desta loja que o Partido Trabalhador belga é criado, dando origem mais tarde ao Partido Socialista.

Apesar de projetar algumas das casas mais suntuosas da época, Horta tinha um forte interesse pelo proletariado. A convite do Partido Socialista, ele desenha a Maison du Peuple, edifício emblemático da Art Nouveau, inaugurado em 1899. Segundo o arquiteto seria "um palácio onde o luxo seria deixar o ar e a luz entrarem". Além disso, os nomes de grandes pensadores socialistas, Marx, Proudhon, Owen, estariam inscritos na fachada principal ao lado das curvas vegetais.

De filho de sapateiro a barão, Victor Horta trilhou um caminho de sucesso, ganhou prêmios, homenagens e reconhecimento profissional, mas teve uma vida pessoal conturbada e se tornou amargo nos últimos anos, quando o estilo que criou saiu de cena.

Bruxelas em seu esplendor

Na virada do século passado, a Bélgica era a segunda economia mais poderosa da Europa, ficando atrás apenas da Grã-Bretanha, graças às minas de carvão e à indústria siderúrgica do país. Surgia assim uma nova classe social abastada, as grandes famílias burguesas que queriam se dissociar da elite aristocrata do passado. Esta nova clientela, liberal e progressista recorreu então a jovens arquitetos inovadores e audaciosos, como Victor Horta e Paul Hankar, em busca de um estilo de vida que se adequasse às suas expectativas de modernidade.

Naquela época, o homem mais rico da Europa era o químico e industrial belga Ernest Solvay, grande mecenas da pesquisa científica, que fez fortuna ao desenvolver o processo da soda cáustica. Em 1904, seu filho Armand se instalou com a família em uma mansão, considerada a obra-prima de Victor Horta, em plena avenida Louise, o endereço mais chique da cidade. Horta teve total liberdade para gastar o que precisasse para criar interiores suntuosos. A residência, que demorou quase dez anos para ser construída e decorada com móveis assinados por Horta, tem espaços fluidos e conectáveis entre si por painéis de vidro e um sistema de ventilação natural.

"O Hôtel Solvay tem 23 tipos de mármores e 17 tipos de madeiras inclusive exóticas", descreve o guia de turismo Raoul Fontaine. "Mas a meu ver, o mais importante é compreender a importância da luz para Horta. Ele queria ela bem presente em todos os ambientes. Para isso, projetou grandes janelas e clarabóias". A curadora do Hôtel Solvay, Dominique de Thibault, lembra à RFI Brasil, que a mansão foi "a primeira a ter eletricidade na Bélgica, além de todas as outras novas tecnologias recém-inventadas. Certamente, foi um marco social da época".

A chegada da eletricidade nas moradias, em substituição ao gás, era uma novidade extraordinária; assim como a invenção do telégrafo, do telefone, do rádio e do microfone, promessas de uma vida moderna. No final dos anos cinquenta, o imóvel foi comprado pela família Wittamer, que o mantêm até hoje. Desta maneira, os Wittamer conseguiram salvar o palacete de um destino incerto e triste. Desde 2002 o Hôtel Solvay foi classificado Patrimônio Mundial da Unesco, ao lado do Hôtel Tassel, Maison e atelier Horta e Hôtel Van Eetvelde.

Apogeu, declínio e revalorização

A Art Nouveau durou apenas vinte anos, de 1890 a 1910, e durante este período, o ferro curvado, os motivos florais e arabescos reinaram soberanos nas fachadas e interiores de Bruxelas. Quando a  Primeira Guerra Mundial começou, o movimento arquitetônico entrou em declínio. Victor Horta decidiu então se mudar para os EUA onde fez palestras em universidades reputadas. Logo depois, lecionou arquitetura na George Washington University, em Washington D.C. De volta à Bruxelas, em 1919, Horta vende sua casa - hoje museu aberto à visitação - para pagar dívidas.

A partir de 1925, a Art Nouveau deixa de ser atraente e cede espaço a novos movimentos como a Art Déco e o Modernismo. O próprio Horta se reinventa e seus projetos passam a ser mais geométricos, como o icônico Palais de Beaux-Arts. Suas influências passam a ser o arquiteto americano Frank Lloyd Wright, cujas obras visitou durante o exílio nos EUA, e a Secessão Vienense, liderada pelo pintor austríaco Gustav Klimt e pelo arquiteto Josef Hoffmann, que construiu o Palácio Stoclet, em Bruxelas.

A crise econômica de 1929 é o primeiro golpe duro nas encomendas de habitações mais abastadas. Logo em seguida surgem os primeiros edifícios de apartamentos. Depois da Segunda Guerra Mundial, nos anos 50 e 60, o desaparecimento de grandes maisons se intensifica. Em uma Europa empobrecida, as pessoas buscam moradias menores, casas geminadas, apartamentos. O belíssimo patrimônio arquitetônico de Bruxelas é demolido em massa. Das 1.500 residências em estilo Art Nouveau pouco menos de 500 sobreviveram à chamada "Bruxelização", a destruição vivida pela cidade em prol do avanço da especulação imobiliária.

Reconstituição em 3D da Maison du Peuple, em Bruxelas, demolida em 1965.

 

Segundo Benjamin Zürstrassen, o cidadão belga tem um sentimento de culpa em relação ao legado de Horta porque muitos projetos do arquiteto foram derrubados. A belíssima Maison du Peuple, considerada por muitos a obra-prima de Horta, deu lugar a um monstro de concreto, nos anos sessenta, apesar do protesto de 600 arquitetos internacionais. "Destruímos a Maison du Peuple, o Hôtel Aubecq, muitas casas foram demolidas entre 1940 e 1980; e essas destruições são irremediáveis. É uma ferida que vai estar sempre presente em Bruxelas. Porém, hoje, existe uma vontade de reparar os estragos, protegendo e valorizando Horta".

Foi apenas em 1985, quando a Região Bruxelles-Capitale foi criada, que o patrimônio Art Nouveau começou a ser protegido. Ainda bem que alguns tesouros arquitetônicos sobreviveram para contar a história desta época de glamour e beleza.