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COP26: restrições sanitárias "racistas" e viagem cara ameaçam presença de ONGs dos países do sul

23/09/2021 07h22

Restrições sanitárias e custos elevados podem deixar de fora da COP26, a Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, milhares de representantes da sociedade civil dos países mais pobres. O evento, historicamente marcado por uma presença em massa das ONGs, acontece em pouco mais de um mês em Glasgow, na Escócia.

Lúcia Müzell, da RFI

Em meio à pandemia de coronavírus, as organizações denunciam o "racismo" das autoridades britânicas, que manterão a exigência a quarentena para os viajantes da chamada "lista vermelha" de países, onde o risco de transmissão pelo coronavírus permanece elevado. Entre eles, está o Brasil e a maioria dos países da América Latina e da África, onde o acesso à vacinação está mais lento do que nas nações desenvolvidas. Mas a medida vale inclusive para as pessoas completamente vacinadas contra a Covid-19.

"Mesmo com a gente 100% imunizado e com outras vacinas além da CoronaVac, eles ainda estão com essa barreira. A gente enxerga isso como um racismo, porque outros países que estão com a mesma vacina, do mesmo fabricante, não estão precisando fazer essa quarentena", critica Paulo Ricardo de Brito Santos, coordenador de Mudanças Climáticas do Engajamundo.

Diante da pressão, o governo britânico se ofereceu para pagar os custos do isolamento em hotel dos participantes da lista vermelha: cinco dias para os imunizados e 10 dias para os que ainda não tiverem tomado a vacina. Mas Paulo esclarece que, a pouco mais de 30 dias da conferência, não há informações sobre de que maneira esse financiamento será liberado. Da mesma forma, a promessa de imunizantes gratuitos para os participantes do evento ainda não se concretizou.

Viagem em libras, com real desvalorizado

A estimativa das organizações é de que o período mais curto de isolamento não sairia por menos de 2 mil libras por pessoa, o equivalente a R$ 14,5 mil. O valor extrapola o orçamento de muitas entidades, para as quais a viagem já representa um esforço financeiro considerável. Daniel Holanda, ativista da Fridays for Future Brasil, avalia que essa restrição visa afastar os países do sul das discussões da COP26.

"Em todas as conferências que eu conheço, eles sempre tentam fazer o apagamento das minorias e que estão na linha de frente das mudanças climáticas, principalmente Brasil, países latino-americanos, da África, que são os mais pobres do mundo", afirma.

Para driblar as dificuldades, as organizações promovem campanhas de financiamento coletivo e buscam ajuda de empresários e personalidades para financiar os custos da viagem.

Menos pressão?

Tradicionalmente, a participação da sociedade civil no maior evento internacional sobre as mudanças climáticas representa um instrumento de pressão crucial sobre os governos, que debatem a portas fechadas os detalhes técnicos de um acordo global para limitar o aquecimento do planeta. No contexto atual, o temor é que a ausência das entidades deixe o caminho mais livre para a adoção de medidas menos ambiciosas face à crise climática.

"Eu acho bastante grave porque estamos lidando com o futuro de milhares de pessoas. Negociar o futuro dos jovens sendo que eles não estão lá é muito grave. As pessoas engravatadas, mais velhas, talvez não estejam daqui a 30 ou 40 anos para ver as consequências dessas decisões que eles tiveram", indica Daniel Holanda. "Mas nós que temos 19, 15, 12 anos, vamos estar daqui a 40 ou 50 anos, recebendo as consequências das medidas que são tomadas hoje em dia."

No caso específico do Brasil, Paulo Santos relembra ainda que, desde a posse de Jair Bolsonaro, o acesso dos ativistas às COPs enfrenta uma barreira a mais: o governo cortou o credenciamento oficial da sociedade civil para o evento. Agora, é preciso buscar apoio junto a grandes entidades internacionais para viabilizar a participação - um caminho tortuoso para as organizações de menor porte.

"Até então, quem cedia essas credenciais era o Itamaraty, mas com a entrada do governo do Bolsonaro, eles não estão mais dando [as credenciais], para a sociedade civil participar desses espaços de tomada de decisão. Qualquer ONG que queira ir através do governo para fazer parte da delegação brasileira, não consegue mais", ressalta o ativista da Engajamundo.

Face ao que consideram uma injustiça e um evento não-democrático, cerca de 1.500 organizações não governamentais pediram, no início de setembro, o adiamento da conferência internacional. A reunião já deveria ter ocorrido em 2020, mas foi postergada para este ano pela crise sanitária. O governo britânico e as Nações Unidas rejeitaram o apelo das ONGs, alegando que a crise climática não pode esperar mais um ano.