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Seis anos após atentados em Paris, França restaura memória das vítimas em processo histórico

12/11/2021 14h04

No dia 13 de novembro de 2015, um comando do grupo Estado Islâmico entrou em Paris e promoveu uma série de atentados, que causaram a morte de 130 pessoas e deixaram mais de 350 feridos. O drama, que comoveu os franceses e o mundo revelou, na época, a capacidade material e logística que os jihadistas da organização tinham em organizar ações de grande porte e espalhar o terror no continente. 

Taíssa Stivanin, da RFI

Em 2015, a França declarou guerra contra o grupo Estado Islâmico, que havia instaurado um "califado" numa área situada entre a Síria e o Iraque, mas isso não impediu que outros ataques voltassem a acontecer no seu território e em outros países da Europa, como a Alemanha. A vitória da coalizão internacional deixou o grupo Estado Islâmico sem base territorial, mas seus herdeiros se tornaram alvo da vigilância permanente da polícia francesa. Esses extremistas, que muitas vezes cresceram ou vivem legalmente na França, acabaram seduzidos pelo radicalismo islâmico. Seis anos após os ataques de 13 de novembro, a França ainda vive sob a ameaça de possíveis ataques, desse "lobos solitários", que podem ocorrer a qualquer momento no território.

O pesquisador francês Gérôme Truc é especialista em Sociologia Moral e Política. Ele estuda principalmente as reações sociais aos ataques terroristas e escreveu a obra "Sideração, uma sociologia dos Atentados", publicada em 2016.  Em entrevista à rádio France Culture, ele explicou  que os atentados revelam tudo o que é mais importante para nós, como humanos: a perda de familiares e pessoas próximas e o questionamento dos valores coletivos a partir de atos violentos. 

"É esse sentimento de proximidade que nos une às vítimas dos atentados. Nas sociedades chamadas com frequência de individualistas, há um momento de tomada de consciência coletiva que nos une", explica.

A jornalista da RFI Laura Martel, especialista em questões de Justiça, acompanha diariamente o processo sobre os atentados de 13 de novembro de 2015, que teve início em 8 de setembro no Palácio de Justiça de Paris, situado no 1º distrito da capital. Pelo menos cerca de 350 pessoas já deram seu depoimento nas inúmeras audiências. "Todos nós sabíamos que seríamos confrontados a um processo de dimensão inédita", contou Laura ao programa Témoins d'Actu. "Sabíamos que começaríamos, nas primeiras cinco semanas, pelos depoimentos das vítimas", contou, falando sobre a carga emocional que envolveria a cobertura.  

A primeira dificuldade, com 15 testemunhos por dia, foi fazer a seleção das histórias que teriam mais destaque, disse Laura. Ela também explicou que não queria resumir o processo ao ataque à casa de shows Bataclan, onde o atentado provocou mais mortes. "Era importante ouvir vítimas de todos os lugares que foram atacados, sem impor uma hierarquia. No próprio Bataclan, as histórias foram bem diferentes em função de onde as pessoas estavam na hora do ataque", lembrou a jornalista. 

A jovem que sentiu a morte

Há testemunhos, entretanto, que são mais marcantes. Ela cita a história da jovem Maya, que estava no restaurante "Le Carillon", um dos alvos dos terroristas naquela fatídica noite de 13 de novembro. Atingida na perna por um tiro, ela disse que não sentiu dor, mas "a morte atrás dela." No atentado, ela perdeu seu marido e suas duas melhores amigas. No momento do ataque, eles conversavam sobre a organização de sua festa de aniversário de 30 anos, que nunca aconteceu. 

"Ela se expressava de uma maneira quase poética. O que me tocou foi esse terrível contraste entre o horror do sofrimento que ela descreve e essa forma poética de contar o que aconteceu", descreve Laura. "É impossível transcrever tudo o que ouvimos, é preciso ir ao tribunal. Quando as vítimas estão falando, nos emocionamos com todas as histórias e tudo o que é dito", reiterou a jornalista da RFI

"Seis anos depois, ainda há famílias que tentam descobrir em quais circunstâncias exatamente morreram seus entes queridos: onde eles estavam, se eles sofreram, como foram seus últimos instantes. É uma história que ainda está sendo construída. É uma grande responsabilidade", conclui Laura. "Esses testemunhos mexem com a gente, mas não fomos vítimas de todo esse terror. De alguma maneira, esse filtro profissional é uma proteção. O importante é veicular a emoção das vítimas no tribunal, não a nossa. Essa emoção, claro, está presente, mas não faz parte do nosso trabalho."

"A democracia é mais forte do que a barbárie"

"Eles declararam guerra e nós respondemos", declarou nesta quarta-feira o ex-presidente François Hollande, que deu seu depoimento nesta quarta-feira (10) no tribunal. A participação do ex-chefe de Estado, inédita na história da Justiça francesa, era um dos momentos mais aguardados do julgamento, que será retomado na terça-feira (16).

As audiências estão suspensas até domingo (14), em respeito à memória das vítimas. Diversos homenagens estão previstas neste sábado (13) de manhã em Paris nos locais escolhidos como alvo pelos jihadistas, como a sala de concertos Bataclan, no 11º distrito da capital, onde 90 pessoas morreram.

Quatorze acusados estão no banco dos réus, incluindo Salah Abdeslam, o único membro do comando ainda vivo. Hollande participou como testemunha no processo, que já ouviu centenas de pessoas. "Esse depoimento é um dever que tenho em relação a todas as vítimas, a todos aqueles que não estão mais aqui, todos os maridos, esposas, pais, mães, irmãos, irmãs ou amigos que vivem a ausência de pessoas amadas", disse Hollande, que manteve, após os ataques, o contato com algumas vítimas e famílias das vítimas. 

Hollande justificou o envolvimento da França na luta contra o "terrorismo islâmico", ressaltando que a ação do grupo Estado Islâmico visou a sociedade francesa, e não as operações militares do país na Síria, como alegou Abdeslam. Em seu depoimento, François Hollande se questionou como "seres humanos podem perder o rumo da vida dessa maneira", em alusão aos terroristas.

"Em uma democracia, para punir os responsáveis ou cúmplices de um ataque monstruoso, a resposta é da Justiça, e não da vingança. A democracia será sempre mais forte do que a barbárie. É ela que sempre vence no fim", disse, ao encerrar sua introdução.

Em seguida, o ex-presidente francês respondeu a diversas questões, para descrever em detalhes a noite de 13 de novembro de 2015. Ele explicou, por exemplo, que não tinha previsto assistir ao jogo de futebol entre a França e a Alemanha no Stade de France, em Seine-Saint-Denis, no subúrbio de Paris, mas mudou de ideia quando soube da presença da chanceler alemã, Angela Merkel. "Era um encontro amigável", declarou. 

Quando o ex-presidente francês, já no estádio, ouviu a primeira explosão, teve a consciência imediata de que poderia se tratar de um atentado. Seu primeiro reflexo foi garantir a segurança do local, para impedir a entrada dos terroristas. Foi neste momento que ele foi informado dos tiroteios nos bares parisienses e do ataque ao Bataclan.

"Imagens estão gravadas na memória"

A situação levou o então presidente François Hollande a tomar três decisões: convocar um conselho de Ministros para declarar o estado de emergência no país, fechar as fronteiras para evitar que os terroristas escapassem e organizar uma operação para liberar os reféns presos no Bataclan. Ele decidiu então ir pessoalmente até a sala de concertos parisiense. "Vi pessoas saindo da sala, elas também me viram. Elas se seguravam umas nas outras. Essas imagens estão gravadas na minha memória." 

Durante a audiência, o presidente do tribunal, Jean-Louis Périès, perguntou a François Hollande qual era o nível da ameça terrorista no país na época do atentado. "Diariamente estávamos sob ameaça. Sabíamos que, entre os refugiados, havia indivíduos que escapavam à nossa vigilância. Mas não sabíamos nem como, nem quando, nem onde eles iriam nos atacar", disse o ex-presidente francês, lembrando que a tropa de elite que entrou no Bataclan teve uma "coragem excepcional" e "que no, no fim, o que conta, é que todos os reféns foram liberados."

François Hollande também explicou, durante sua audiência, que Abdelhamid Abaadoud, o chefe operacional dos ataques de 13 de novembro, era um "alvo" prioritário dos serviços de inteligência franceses. Ele respondeu que já tinha ouvido seu nome em agosto de 2015, mas só descobriu após os atentados que ele tinha conseguido voltar para o território europeu. 

Um dos advogados das partes civis, Oliver Morice, perguntou ao ex-presidente se ele sabia que o Bataclan estava sob ameaça desde 2009. Hollande respondeu que era impossível fechar todas as salas de shows sob essa alegação. "Respeito profundamente os pais das vítimas, mas não havia uma ameaça particular que envolvesse o Bataclan", justificou.

A advogada de Salah Abdeslam, Olivia Ronen, questionou Hollande sobre as datas dos ataques franceses ao reduto do grupo Estado Islâmico na Síria. Ela assegurou que não se tratava de legitimar os atos terroristas, mas conhecer a cronologia exata das operações militares e suas possíveis vítimas civis "colaterais", para saber se ocorreram antes ou após os ataques.

O advogado de um dos acusados, Ilyacine Maallaoui, também estimou que o reconhecimento de que essas operações deixaram vítimas colaterais não era uma "ofensa" para as vítimas do 13 de novembro. François Hollande utilizou o seu conhecido bom humor para responder as questões: ele disse que não sabia que advogados de defesa eram mais especilizados em política internacional do que em direito penal. 

Depois de quatro horas de audiência, o presidente do tribunal agradeceu a participação de François Hollande. De repente, para a surpresa de todos, Salah Abdeslam, se levantou, pedindo a palavra. "Não, senhor Abdeslam, se você tem alguma pergunta, passe pelos seus advogados", reagiu o presidente do tribunal. O acusado se sentou novamente e François Hollande deixou o recinto. Antes, o ex-presidente repetiu: "a democracia é mais forte do que a barbárie".