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Supremacia branca tentou reduzir espaços de mobilidade social de negros, aponta historiadora

19/11/2021 14h58

A escravidão não foi o único mecanismo de subordinação de negros e seus descendentes na sociedade colonial e imperial brasileira. Mesmo aqueles que conquistaram sua liberdade ou os filhos de pais brancos e mão negras estavam submetidos a uma série de formas de discriminação que limitavam seus direitos e sua possibilidade de mobilidade social. É isso que conta a historiadora Mariana Dantas, professora da Universidade de Ohio nesta entrevista à RFI. 

A pesquisadora tem se dedicado recentemente a estudar a possibilidade de mobilidade social no Brasil colonial para as mulheres negras livres e seus filhos. A partir de inventários e registros cartoriais, Dantas encontrou na Minas Gerais setecentista diversos casos de escravas africanas que conseguiram comprar sua alforria através do comércio de rua e mesmo acumular posses. No entanto, essas mulheres, ainda que poucas, tinham outras barreiras em sua trajetória para garantir uma vida fora da miséria para seus filhos.

"O que eu mostro na minha pesquisa é que na medida que essas gerações encontravam espaços para negociar uma ascensão social, o estado e a sociedade colonial e imperial usavam instrumentos de supremacia branca para tentar reduzir a possibilidade de mobilidade social", explica. 

Um dos exemplos que Mariana Dantas traz em seus trabalhos é a criação de milícias (forças policiais) divididas pela cor de seus oficiais. "As milícias foram diferenciadas entre milícia branca, parda e preta. Então um filho de uma africana, que fosse pardo, se ele ia servir na milícia, o que era obrigatório, ele vai ser colocado na milícia parda. Então existe um jeito dessa sociedade continuar a manifestar diferença racial que cria limitações a uma verdadeira mobilidade social e política onde raça não seja mais um fator", diz a professora.

A historiadora cita ainda outro caso que mostra barreiras impostas nos estudos que vão além das limitações econômicas. Um filho de português com uma ex-escravizada que tem acesso ao ensino superior no início do século 18 e vai para Coimbra estudar na conhecida universidade portuguesa. No entanto, ao final do curso ele não tem direito ao diploma por não poder apresentar um documento que prove sua "pureza de sangue".

"A gente vê os diferentes mecanismos usados pela sociedade branca para manter seus privilégios. São realmente mecanismos de supremacia branca", analisa.

Direitos como privilégios

Ao se debruçar sobre a trajetória de negras que deixaram a escravidão, a pesquisadora destaca que essas mulheres estavam sob dupla submissão, por sua cor de pele e por seu gênero. Assim, a elas eram rejeitados direitos que para mulheres brancas eram concedidos como privilégios. Por exemplo, no momento da morte dos maridos, as mulheres brancas podiam recorrer à Justiça para terem o direito à tutoria dos filhos de até 25 anos e, assim, o controle de sua herança. Às negras libertas, o pedido não era concedido.

"A gente começa assim a entender como que o jeito que essa sociedade funciona ajuda a reproduzir a desigualdade social mesmo quando estamos falando de pessoas que saíram da escravidão para a liberdade", sublinha.

Para a pesquisadora, esses são dados que colocam por terra a ideia de democracia racial, já descartada pela historiografia mas que teima a reaparecer em discursos políticos atuais. 

"Muita gente tende a pensar indivíduos bem-sucedidos como evidência de que talvez o Brasil não tenha tanto um problema racial como tem os Estados Unidos. A minha perspectiva é de olhar a formação de famílias. E a análise de gerações mostra os mecanismos que fazem com que o sucesso de um indivíduo não se traduza em uma verdadeira mobilidade e na aquisição de direitos sociais e políticos."

No seu trabalho mais recente, Mariana Dantas mostra como o comércio de rua foi usado em Minas Gerais durante o século 18 para que escravizadas pudessem comprar sua liberdade e garantir propriedades para seus descendentes. Apesar de conseguirem acumular recursos com esse trabalho, vital para as vilas mineiras da época, a atividade não lhes garantia poder diante da sociedade.

"Principalmente as africanas livres estavam em uma economia informal, elas não estavam participando das atividades econômicas consideradas pela Coroa [portuguesa] como do interesse imperial, mas elas participavam de atividades econômicas que eram essenciais, traziam comida para as vilas, teciam. Eram atividades essenciais à vida diária mas que, por não serem consideradas de interesse imperial, mesmo quando elas puderem adquirir poder econômico, ele não se traduz em poder político", explica.

Dantas faz uma ponta entre essa dinâmica colonial e o lugar da economia informal no Brasil de hoje.

"A gente sabe que grande percentagem da população brasileira depende da economia informal, mas se ela não é vista como essencial, necessária para o bem-estar do país, essas atividades não se traduzem em direitos sociais e em direitos políticos. Foi algo que vimos com ainda mais saliência no período da pandemia. Eles não tinham o direito de ficar em casa. A gente vê muito explicitamente como para certa população direitos são apenas para quem tem privilégios", reflete.