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Street art conquista museus e galerias pelo mundo, mas ainda é alvo de "políticas de apagamento"

28/01/2022 16h15

De Nova York a Dakar, de São Paulo a Londres, de Sidney a Paris, a street art decora espaços urbanos do mundo inteiro, democratizando a cultura, denunciando governos e a desigualdade social e quebrando os códigos da arte institucionalizada. A mudança de paradigma ocorre paralelamente à criação de políticas de apagamento que hoje substituem a repressão policial aos artistas urbanos das décadas anteriores. A RFI conversou com street artists e especialistas em cultura urbana sobre a questão.

Considerado marginal durante décadas após sua emergência, nos anos 1960 nos Estados Unidos, o grafite hoje é aclamado em boa parte do mundo, representado por célebres artistas, como Banksy, Obey, e os brasileiros OsGêmeos, por exemplo. Seu campo de atuação continua sendo as ruas, mas a arte urbana também ganha espaço nos principais museus e galerias internacionais e faz parte de políticas públicas das grandes metrópoles.

Mas, para chegar nesse ponto, o grafite teve de lutar por sua sobrevivência. Em muitas cidades, a arte de rua nem sempre é apreciada, ainda sofre preconceito e é reprimida pelas autoridades. Karim Madani, journalista especialista em culturas urbanas, explica que a má fama da street art tem a ver com suas origens, no final dos anos 1960, nos Estados Unidos.

"Provavelmente o grafite nasceu na Filadélfia e foi para Nova York, devido à curta distância entre essas duas cidades. E não podemos compreender a história da chegada do grafite em Nova York sem traçar um paralelo com o movimento hip hop e principalmente a criminalidade. Nos anos 1970, Nova York enfrentava uma grave crise econômica, era uma das cidades americanas mais perigosas, tomada por gangues", diz.

Ou seja, a street art era relacionada ao vandalismo e à violência. Mas para os artistas urbanos, ela representava uma luta por visibilidade. "O grafite é uma maneira para eles de superar tudo isso. Ou, como dizem os americanos, é uma arte que saiu do caos. Naquela época, os grafiteiros tinham a necessidade de se afirmar como indivíduos em uma sociedade que queria apagá-los", reitera Madani.

Repressão popularizou o grafite

A repressão policial aos grafiteiros americanos de nada serviu para acabar com o movimento. Ao contrário, a street art se espalhou e ganhou admiradores e seguidores no mundo inteiro. É o caso de Docta, pioneiro do grafite no Senegal e fundador do coletivo Doxandem Squad.

"Todos os livros que eu tinha sobre grafite vinham de Nova York, de um primo que morava lá que quando passava férias no Senegal me trazia tudo isso. Depois, os bairros mais pobres do Senegal viram que essa cultura tinha relação com eles e se apropriaram dela. Eu aprendi a grafitar porque, nesta época, no começo dos anos 1980, eu escutava rap, copiava os desenhos que eu via nas revistas americanas, e tudo isso me permitiu criar minha identidade", conta.

Docta viu a cultura da arte urbana nascer e se expandir no Senegal e hoje é um dos grandes nomes do grafite africano. "Graças a um projeto que tinha o objetivo de melhorar o visual de Dakar, eu pude começar a pintar muros. Isso me permitiu encontrar muitas pessoas, conhecer um outro mundo através do grafite e utilizá-lo para conscientizar a população. O movimento ganhou muita força aqui, desenvolvemos um trabalho importante que conquistou não apenas o Senegal, mas toda a África Ocidental."

No Brasil, não foi diferente: a arte urbana ganhou as ruas e se popularizou a partir dos anos 2000, fazendo emergir grafiteiros brilhantes como Eduardo Kobra, Nina Pandolfo, Alex Hornest, Binho Ribeiro, entre tantos outros. Como eles, Fefe Talavera transita com maestria entre os universos da rua e das galerias. 

"Essa nova fase da arte urbana vem abrindo portas a muita gente. Os grafiteiros, que antes eram vistos como vândalos, hoje são acolhidos por galerias e museus. E isso é muito bom para aquele artista que não pôde ir para a faculdade estudar arte, por exemplo. Antes não havia nem chance de um grafiteiro ser chamado de artista. Então é muito legal ver essa transformação ocorrendo hoje", avalia.

No entanto, nem tudo são flores: em 2017, o então prefeito João Doria declarou guerra aos artistas urbanos com o polêmico projeto "Cidade Linda", que apagou centenas de ilustrações na capital paulista. Apelidada de "maré cinza", a atitude do prefeito foi repudiada por parte da opinião pública. Os muros que o próprio Dória fez questão de cobrir com tinta cinza passaram a ser ilustrados com frases de protestos e críticas à prefeitura.

Política de apagamento

Na Europa, muitos governos e administrações locais ainda têm dificuldades em lidar com alguns artistas urbanos. Em Paris, onde circuitos turísticos valorizam a história do graffiti francês, a prefeitura tem uma política estrita de apagamento, especialmente de tags e pixações em locais proibidos.

Julie Vaslin, pesquisadora especialista de ação pública da Universidade de Lille, afirma que a fase da perseguição da polícia aos artistas urbanos parece ter ficado para trás. Hoje em dia, as autoridades encontraram outra forma de reprimir os grafiteiros, instituindo políticas de apagamento.

"Numa época houve uma célula antigrafite da polícia que perseguia quem pixava o metrô de Paris. Teve um grupo, inclusive, que enfrentou um processo durante 10 anos. Mas hoje não tem mais essa célula ou qualquer outra para perseguir os grafiteiros. O que acontece é que os pixos são apagados por equipes mobilizadas especialmente para isso. Mas se você é pego em flagrante, é claro que haverá complicações", adverte.

Segundo ela, esse contexto de repressão policial já foi muito mais forte na França, e continua existindo em menor escala, mas hoje não é mais prioridade. No entanto, para Julie, a estratégia é um tanto contraditória. 

"A política de apagamento é muito presente, porque ela torna invisível a pixação, que contrasta, claro, com as grandes pinturas, os grandes murais que vemos em todos os lugares de Paris. Existe uma divisão estética por parte das autoridades: de um lado está o apagamento e de outro a promoção", analisa.

Em um dos processos mais recentes e emblemáticos envolvendo um artista urbano na França, Monsieur Chat - autor do sorridente gato amarelo que o tornou famoso internacionalmente - correu o risco de ser condenado a três anos de prisão. Em 2016, ele desenhou o felino em um painel dentro de uma estação de metrô de Paris. Depois de dois anos de processo, em 2018, ele foi condenado a pagar € 500 de multa por "degradação pública".